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Com as eleições de 2018 cada vez mais perto e a internet pegando fogo, sem sinal de o calor estar diminuindo, a liberdade de expressão deve voltar ao centro do debate político brasileiro. Só para se ter uma ideia, em 2016, quando o Brasil passou por eleições municipais, foram 666 novas ações só de políticos buscando alguma providência na Justiça para impedir a divulgação de informações. Em 2015, tinham sido apenas 30 casos deste tipo e, em 2014, ano de eleitoral, foram 599. Neste ano, até a data de fechamento desta reportagem, são 33. A diferença é de 20 vezes entre anos eleitorais e não eleitorais. Os dados são do projeto CRTL-X da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)

Um dado chama atenção no levantamento. Das 3018 ações que compõem o banco de dados, 474 têm algum pedido para proibir a veiculação de informações antes de sua publicação – casos como o do jornal O Estado de S. Paulo, impedido desde julho de 2009 de publicar informações sobre investigação envolvendo o filho do ex-presidente José Sarney (PMDB) . Em 140 delas – 29% –, o juiz deferiu o pedido, seja em liminar, seja na decisão final. Em algumas ações, candidatos chegaram a solicitar um ataque DDoS (sigla em inglês para “ataque de negar um serviço”, em que um computador mestre derruba um endereço por sobrecarga de acesso) ao site do Facebook, caso fosse necessário fazer cumprir uma eventual decisão de retirada de conteúdo ou abstenção de postagem. A partir deste tema, que deve voltar com força no próximo ano, o Justiça inaugura uma série de reportagens analíticas sobre a liberdade de expressão no Brasil. 

Convicção da Gazeta: Liberdade de expressão

Os juízes que decidem conceder uma tutela antecipada impedindo a circulação de informação antes de sua veiculação se baseiam no chamado poder geral de cautela do Judiciário, que decorre do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal (CF): “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A própria Constituição, por exemplo, prevê que são “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (CF, art. 5º, X), garantindo a reparação por danos materiais ou morais a esses bens e eventual direito de resposta (CF, art. 5º, V). No caso da honra, o direito brasileiro dá um passo além e a protege por meio da lei penal, que criminaliza a calúnia, a injúria e a difamação. Como corolário, muitos juízes acabam entendendo ter a competência de impedir de antemão a divulgação de uma informação que seja potencialmente danosa a alguém ou a alguma empresa. 

Várias decisões dessa natureza, porém, têm sido derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com base no entendimento que o tribunal firmou no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, que declarou a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, em 2009, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, em que a corte liberou a publicação de biografias não autorizadas, em 2015. 

Segundo o Supremo, o inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal, que diz que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, lido em conjunto com o artigo 220, que diz que “[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” e que “[é] vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”, não permite a existência de censura prévia no Brasil. 

Constituição Federal:

Artigo 5º. (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Censura judicial 

O tribunal tem reiterado essa compreensão ao enfrentar casos de “censura judicial”. Em setembro deste ano, o ministro Edson Fachin derrubou uma decisão que ordenava um portal de notícias do Piauí a apagar matérias investigativas sobre uma empreiteira local e não publicar mais sobre o tema. Em agosto, o ministro Alexandre de Moraes já havia derrubado uma decisão que proibia um blogueiro do Ceará de publicar no Facebook sobre o prefeito de uma cidade do interior, destacando que informações que possam ser injuriosas, difamatórias ou mentirosas podem gerar responsabilização posterior de seus autores, mas nunca fundamentar uma censura prévia e abstrata, sem atenção aos detalhes do caso. 

Em uma decisão análoga, de setembro de 2015, o ministro Celso de Melo manifestou preocupação com a proliferação desse tipo de decisão judicial cautelar: “Preocupa-me, por isso mesmo, como já destaquei em anteriores decisões nesta Corte Suprema, o fato de que o exercício, por alguns juízes e tribunais, do poder geral de cautela tenha se transformado em inadmissível instrumento de censura estatal, com grave comprometimento da liberdade de expressão, nesta compreendida a liberdade de imprensa e de informação. Ou, em uma palavra, como precedentemente já acentuei: o poder geral de cautela tende, hoje, perigosamente, a traduzir o novo nome da censura!”, ponderou na decisão. 

A mesma linha segue a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), da qual o Brasil é signatário, ao afirmar, em seu artigo 13: 

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: 

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou 

b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

Estados Unidos 

Nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte construiu, ao longo do século XX, a mais ampla proteção jurídica à liberdade de expressão, o tribunal decidiu pela primeira vez, no caso Near vs. Minnessota (1931), que a Primeira Emenda da Constituição americana proíbe a censura prévia no país, inclusive pela via judicial. O caso surgiu quando o Judiciário local mandou fechar um jornal por “perturbar a paz pública”, com base em uma lei estadual que definia jornais “maliciosos, escandalosos e difamatórios” como perturbadores. 

Primeira Emenda

O Congresso não deverá fazer nenhuma lei (...) limitando a liberdade de expressão [freedom of speech] ou de imprensa

Quando o caso chegou à Suprema Corte, a maioria entendeu que uma restrição dessa natureza era incompatível com a compreensão sedimentada pela história da liberdade de expressão nos Estados Unidos. “Ao determinar a extensão dessa proteção constitucional, sempre se considerou, em geral, senão universalmente, que o principal propósito dessa garantia é prevenir restrições prévias sobre as publicações. A luta na Inglaterra dirigida contra os poderes legislativos dos licenciadores resultou na renúncia da censura à imprensa”, escreveu pela maioria o presidente da Corte, Evans Hughes. 

A decisão da Suprema Corte se baseou, em grande medida, em uma longa discussão sobre a censura prévia no direito anglo-saxão, rememorada por Anthony Lewis no livro Make No Law – The Sullivan Case and the First Ammendment. O combate à censura prévia esteve no centro do amadurecimento do liberalismo inglês durante o século XVII, até que a Coroa abandonasse a prática em 1694. No século XVIII, o jurista inglês William Blackstone, uma grande influência inclusive nos Estados Unidos pós-independência, já reconhecia a impossibilidade de censura prévia no direito inglês. 

“A liberdade de imprensa é, de fato, essencial à natureza de um estado livre; mas ela consiste em não colocar nenhuma restrição prévia às publicações, e não em livrar-se da censura criminal quando publicadas. Todo homem livre tem o direito inquestionável de mostrar ao público os sentimentos que quiser: proibir isso é destruir a liberdade de imprensa; mas se ele publicar algo impróprio, malicioso ou ilegal, ele deve assumir as consequências de sua própria temeridade”, escreveu em seus Comentários às Leis da Inglaterra, formulando o problema de uma maneira muito parecida, descontados os maneirismos de época, com a que os ministros do Supremo brasileiro a entendem 250 anos depois. 

Apesar de a Primeira Emenda datar de 1791, a Suprema Corte só se manifestou sobre a censura prévia 140 anos mais tarde porque, até 1925, a declaração de direitos — da qual a Primeira Emenda é parte — protegia os cidadãos apenas contra a legislação federal, e não contra as leis dos estados, o que mudou no julgamento do caso Gitlow vs. New York, naquele ano. A última lei federal que tinha chacoalhado o debate público nos Estados Unidos relativamente à liberdade de expressão, ao tornar crime a crítica “falsa, escandalosa e maliciosa” contra o governo federal – e que não resvalava no problema da censura prévia – havia sido editada em 1798 e expirado em 1800, antes que fosse questionada no tribunal. 

O problema da censura 

Embora a decisão de 1931 seja sólida e muitos outros países tenham aderido ao consenso de abandonar, em regra, a censura prévia, o tema ainda levanta algumas discussões. Eric Barendt, em seu livro Freedom of Speech, resume o principal problema: a censura prévia pode ter menos impactos na expressão de ideias do que a responsabilização posterior. “De fato, o efeito inibidor [chilling effect] de sanções penais prospectivas podem ser bem maiores, porque o editor enfrenta as incertezas gêmeas de um possível processo judicial e de uma sentença imprevisível”, escreve o autor. Punições criminais, ou mesmo vultosas condenações financeiras por danos morais, poderiam gerar uma forte autocensura em editores e produtores, o que, dependendo do grau em que é exercida, não necessariamente é um problema, se se deseja uma imprensa responsável. 

Quem também se pergunta se a censura prévia administrativa não seria um método mais efetivo para proteger direitos de lesões, para então chegar à conclusão contrária, é Alexandre Faraco em seu texto “Controle da Qualidade da Radiodifusão – Mecanismos de Aplicação do Artigo 221, IV, da Constituição Federal”, publicado em 2006. Faraco aponta duas razões para não apostar na censura.

A primeira, de ordem prática, seria como escolher os censores administrativos em uma sociedade democrática e plural e criar métodos para analisar previamente uma infinidade de conteúdos, que se proliferam na mesma medida em que os avanços tecnológicos. A segunda, e que o autor considera fundamental, é de natureza moral: a censura pressupõe uma incapacidade das pessoas para exercer seus juízos morais de maneira independente, o que acaba por negar-lhes a própria possibilidade de ser responsabilizadas por eventuais abusos. 

“Em essência, a censura (...) é um exercício permanente de desconfiança na honradez e na responsabilidade dos cidadãos (...) A censura é uma atitude paternalista, na qual o indivíduo é considerado um ser incapaz, objeto de tutela por parte do Estado. Tende a gerar um subdesenvolvimento moral, pois quem tem a sua atividade censurada é convidado, pelo próprio sistema, a não assumir com responsabilidade própria a análise dos aspectos que estarão sujeitos ao escrutínio do outro”, escreve Faraco. 

“O exercício permanente da desconfiança da capacidade moral e da responsabilidade do cidadão, que constitui o pressuposto nuclear da censura, é claramente incompatível com a dignidade do ser humano e sua possibilidade de autodeterminação no meio social”, completa. 

Classificação indicativa 

O rechaço à censura prévia, que marca a Constituição de 1988, muito como uma reação ao período de censura do regime militar, inaugurado pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), alcança não só as publicações escritas, mas o cinema, o rádio e a televisão. No entanto, como é comum em muitas sociedades democráticas, o constituinte brasileiro reconheceu a peculiaridade dos meios de comunicação de massa e criou um regime próprio para eles, a começar pelo fato de que o artigo 223 da Constituição Federal prevê a outorga de concessão, permissão e autorização para os meios de radiodifusão sonora e de imagens, enquanto o parágrafo 6º do artigo 220 garante, ao contrário, que “[a] publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade”. 

A Constituição também previu para esses meios e para “diversões públicas” (como espetáculos de circo) a existência de um sistema de classificação indicativa (art. 21, XVI), a fim de auxiliar os pais e a família a cuidarem de crianças e adolescentes, uma necessidade reforçada pela edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. O artigo 74 do ECA diz que o poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada e o artigo 75, que “[t]oda criança ou adolescente terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária”, embora as menores de 10 anos precisem sempre estar acompanhadas de pai ou responsável. 

Constituição Federal

Art. 21. Compete à União:

(...)

XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)

§ 3º Compete à lei federal: 

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; 

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:  

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; 

II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; 

III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; 

IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

O regramento da classificação indicativa, atualmente, está desenhado pela portaria 368/2014 do Ministério da Justiça (MJ), que prevê classificação prévia para “obras audiovisuais destinadas à televisão e aos mercados de cinema e vídeo doméstico; jogos eletrônicos e aplicativos; jogos de interpretação de personagens [RPGs]”. Por outro lado, estão isentas de classificação prévia “exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais; competições esportivas; programas e propagandas eleitorais; propagandas e publicidades em geral; e programas jornalísticos”, embora as exibições públicas abertas ao público devam informar a classificação, de acordo com os critérios do guia prático, de forma “clara, nítida e acessível”. 

A classificação se orienta recomendando, a partir dos eixos “violência”, “sexo e nudez” e “drogas”, o que é livre para todos os públicos, ou adequado para maiores de 10, 12, 14, 16 ou 18 anos, a partir de uma série de exemplos. A portaria prevê ainda que “[a] classificação indicativa tem natureza pedagógica e informativa capaz de garantir à pessoa e à família conhecimento prévio para escolher diversões e espetáculos públicos adequados à formação de seus filhos, tutelados ou curatelados”, em consonância com o artigo 227 da Constituição, que reconhece o “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade” o respeito aos seus direitos. 

Constituição Federal

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Alguns casos recentes reacenderam os debates ao redor da classificação indicativa. Em setembro deste ano, o vídeo de uma criança tocando um homem nu no MAM-SP criou uma celeuma e trouxe à tona a discussão sobre a classificação. Em resposta à mobilização social, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) proibiu a entrada de menores de 18 anos na exposição “Histórias da Sexualidade”, inaugurada em 20 de outubro, mesmo acompanhados de seus pais ou responsáveis. A decisão baseou-se no artigo 8º da Portaria MJ 368/2014, segundo o qual “A prerrogativa dos pais e responsáveis em autorizar o acesso a obras classificadas para qualquer idade, exceto não recomendas para menores de dezoito anos, não os desobriga de zelar pela integridade física, mental e moral de seus filhos, tutelados ou curatelados” [destaque nosso]. 

Em meados de novembro, no entanto, o MASP reverteu a decisão, a partir de uma nota técnica produzida pelo Ministério Público Federal (MPF), que entendeu que “[p]or ser ‘indicativa’, a classificação etária efetuada pelo Poder Público não possui força vinculante” e que “[c]ompete exclusivamente aos pais ou responsáveis decidir sobre o acesso de menores de 18 anos a programas televisivos e diversões e espetáculos em geral”. Isso porque a proibição para menores de 18 anos não está prevista nem pela Constituição, nem pela lei, não podendo a classificação indicativa transformar-se, por meio de regulamentação administrativa, em proibição de acesso. O artigo 8º da nota técnica do Ministério da Justiça, porém, continua em vigor, porque não foi questionado na Justiça. 

A manifestação do MPF baseou-se também em uma decisão recente do STF que, no julgamento da ADI 2.404, em 2016, declarou a inconstitucionalidade de um trecho do artigo 254 do ECA: “Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação” [destaque nosso]. O tribunal entendeu que a atividade de classificação exercida pelo MJ “não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação”. “Não há horário autorizado, mas horário recomendado”, diz o acórdão. 

Seguindo a lógica da responsabilização posterior, no entanto, o tribunal ressaltou: “[s]empre será possível a responsabilização judicial das emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças e dos adolescentes, levando-se em conta, inclusive, a recomendação do Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se mostre inadequada”. A recomendação não é inócua: em setembro deste ano, depois de uma mobilização de pais nas redes sociais, o Procon de São Paulo multou em R$ 2 milhões a HBO pela exibição de uma animação com temática adulta no horário da tarde sem, segundo a autarquia, qualquer aviso sobre o conteúdo impróprio. 

O problema dos critérios 

No mesmo caso Near vs. Minnessota em que decidiu, a princípio, pela impossibilidade de censura prévia nos Estados Unidos, inclusive judicial, a Suprema Corte reconheceu algumas situações excepcionais que podem justificar uma decisão que impeça de antemão a circulação de informações. “A proteção, mesmo contra a censura prévia, não é absolutamente ilimitada; essa limitação, porém, é reconhecida apenas em casos excepcionais”. Entre essas hipóteses, a corte cita certas informações sensíveis em época de guerra, certas publicações obscenas, em vista dos bons costumes, e atos de incitação à violência ou de apologia ao crime contra um governo legítimo. 

O próprio ministro Fachin, quando derrubou a censura prévia contra o portal de notícias do Piauí, em setembro deste ano, não pôde deixar de entrar no mérito das reportagens, ainda que preliminarmente, para fundamentar a sua decisão. Fachin percebeu “o tom descritivo utilizado pelas peças jornalísticas e a remissão às informações e documentos oficiais obtidos por meio do órgão encarregado da investigação do caso” e que “não se trata, ao menos à época dos fatos noticiados, de divulgação de informações que se reputem manifestamente falsas ou infundadas, havendo, de outro lado, nítido interesse da coletividade à informação veiculada”. 

Isso mostra que, apesar de o ministro aposentado Carlos Ayres Brito, relator da ADPF 130, insistir que liberdade de expressão é absoluta no Brasil, uma posição minoritária entre juristas e juízes, ela não é absoluta nem mesmo em relação à censura prévia judicial. É difícil imaginar que um juiz não concedesse uma ordem de abstenção de publicação ou de recolhimento de um jornal que, por exemplo, fosse publicar imagens de pornografia infantil. Na decisão de Fachin, bastante na linha de Near vs. Minnessota, o ministro reconhece: “forte ônus argumentativo para imposição de eventuais restrições à divulgação de peças jornalísticas, todas sempre bastante excepcionais”. 

Como regra geral, portanto, embora o STF ainda não tenha decidido sobre isso, os ministros parecem reconhecer que, se há um forte ônus argumentativo para restringir a liberdade de expressão, sempre com base na proteção de outros valores constitucionais, esse ônus é ainda maior no caso de eventuais restrições prévias. Por isso, a discussão sobre liberdade de expressão, que vem assumindo um papel central no Brasil, principalmente pelo empuxo da jurisprudência dos Estados Unidos, deve ter como foco os valores que justificam alguma restrição pontual e quais critérios devem balizar as decisões nesse sentido. 

Os próximos textos desta série de reportagens analíticas vão justamente enfrentar essas questões. Como linha geral, a Constituição brasileira prevê, como restrições possíveis à liberdade de expressão: a vedação do anonimato (CF, art. 5º, IV), como meio necessário para se assegurar eventual responsabilização e garantir o direito de resposta (CF, art. 5º, V); a proteção da honra, da intimidade, da vida privada, e da imagem das pessoas (art. 5º, X); os segredos de Estado (CF, artigo 5º, XXXIII); o respeito à lei penal (CADH, art. 13.2, “b”); o sentimento religioso (CF, art. 5º, VI); a moral pública (CADH, art. 13.2, “b” e CF, art. 221); e a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).  Cada uma dessas restrições traz uma série de desafios, agora ainda mais prementes na era da internet, que serão enfrentados ao longo desta série.

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