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| Foto: Reprodução/Janko Ferlic/Unsplash

“Já faz duas semanas que realizei o procedimento. Ontem fui fazer um ultrassom para ter certeza e, sim, deu tudo certo”. “Procedimento realizado com sucesso, só seguir as orientações”. “Gostaria de agradecer a quem montou esse site. Engravidei e todas as orientações necessárias consegui aqui”. 

Esses são apenas alguns, dentre centenas, de relatos que podem ser encontrados em sites, com publicações em português, que fornecem uma espécie de passo a passo para brasileiras que desejam realizar um aborto. 

Embora algumas dessas páginas sequer anunciem a venda de comprimidos abortivos, sendo o Cytotec o mais conhecido, não estariam os responsáveis por esses sites cometendo um delito? E quem, no desespero, acaba comprando esses medicamentos não estaria cometendo um crime?  

Leia: Por que o aborto não deve ser legalizado no Brasil

Antes de tudo, é importante lembrar que, atualmente, a lei penal brasileira não pune o aborto em apenas duas circunstâncias: o chamado aborto necessário, quando não há outro meio para salvar a vida da gestante, ou quando a gravidez é decorrente de estupro. 

Ainda, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, ao julgar a ADPF 54, também é possível o aborto, com assistência médica, se ficar comprovado que o feto é anencéfalo. Fora dessas situações, o aborto pode ser punido (saiba o que diz a lei). 

Levando em consideração tal cenário, o advogado criminalista Jovacy Peter Filho, em relação aos sites que ensinam como realizar o procedimento, afirma que poderia estar configurada a incitação ou apologia ao crime, condutas que podem ser punidas com detenção, de três a seis meses, ou multa. 

Enquanto a incitação pressupõe um incentivo, uma persuasão à prática de conduta indevida, a apologia se configura quando há um enaltecimento de fato ou agente criminosos. Em ambos é preciso dolo. Também não há modalidade tentada desses crimes. 

“Uma vez identificada a conduta, as próprias autoridades policiais podem instaurar um inquérito para apurar possíveis responsabilidades”, explica o advogado Jovacy Peter Filho. 

Caso seja verificada a eventual prática de crime, o Ministério Público deve ser oficiado e, se necessário, o órgão vai requerer que as páginas sejam tiradas do ar. “[O problema é que] a investigação desse tipo de conduta no meio virtual ainda tem sido um processo de construção das autoridades policiais, pois muitas vezes o site não está hospedado no Brasil”, complementa. 

Convicções da Gazeta: Defesa da vida desde a concepção

Angela Gandra Martins, doutora em Filosofia do Direito, aponta que o principal problema em relação a essas páginas, além de serem moralmente questionáveis, é que elas atingem uma dimensão pública. Segundo ela, o direito não defende a moralidade em sua totalidade, pois se se tem vontade de cometer algo errado sozinho, como manter relações extraconjugais, não haverá punição, uma vez que o problema nesses casos é de quem comete. “Agora, quando há uma dimensão pública e afeta outro ser, o direito precisa tomar uma atitude”, afirma. 

Professor de Direito Penal do Unicuritiba, Gustavo Scandelari pensa de modo diverso. Para ele, o simples fato de ensinar como se pratica um aborto não se encaixa nos crimes de apologia ou incitação, vez que não são incisivos e atuam na linha de “se você quiser fazer aborto, a orientação é a seguinte...”. Nesse sentido, a conduta seria atípica, pois não existe tipo penal que possa englobar quem alimenta essas páginas. 

Ele compara a situação com o que foi discutido na ADPF 187, julgada pelo STF em 2011. A ação versava sobre o enquadramento – ou não – de manifestações como a “marcha da maconha” no crime de apologia a fato ou autor de fato criminoso. Na época, Celso de Mello entendeu se tratar de movimentos sociais espontâneos, que reivindicavam, por meio da livre manifestação do pensamento, “a possibilidade da discussão democrática do modelo proibicionista [do consumo de drogas] e dos efeitos que [esse modelo] produziu em termos de incremento da violência”, não sendo, portanto, crime. 

Tráfico de drogas 

Não há desacordo, porém, quanto ao crime cometido por quem compra o Cytotec, o mais “popular” dos comprimidos abortivos, utilizado originalmente no tratamento e prevenção de úlcera do estômago. Por ter comercialização proibida desde 2005 no Brasil, o único jeito de conseguir o remédio é por intermédio do tráfico. 

No caso de quem envia o remédio para cá, como algumas ONGs pró-aborto estrangeiras, é difícil que seja configurado crime, porque a regra, segundo Peter Filho, é que seja aplicada a territorialidade da lei penal – ou seja, responde-se por crimes, previstos na legislação nacional, praticados em território brasileiro. 

De acordo com os advogados, quem importa esse tipo de medicamento pode ser processado por tráfico de drogas. Previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o delito é punível com reclusão de cinco a 15 anos e equiparado aos crimes hediondos, aqueles com extremo potencial ofensivo e passíveis de maior reprovação por parte do Estado e da sociedade. 

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Em 2016, contudo, o STF decidiu que a modalidade privilegiada de tráfico de entorpecentes não tem natureza hedionda. Nesses casos, as penas podem ser reduzidas de um sexto a dois terços, caso o agente seja primário, com bons antecedentes e não se dedique a atividades criminosas, tampouco integre organizações para o tráfico. As mulheres que compram abortivos, provavelmente, seriam enquadradas nessa situação. 

Alguém que compra Cytotec em grande quantidade para revenda, porém, e não para uso próprio, comete crime equivalente ao de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

Previsto no artigo 273 do Código Penal, trata-se de um crime contra a saúde pública, listado no rol de crimes hediondos. Se praticado na modalidade dolosa, pode render reclusão de 10 a 15 anos, além de multa, para quem o comete. 

Soluções 

Independentemente da configuração ou não de crime, Peter Filho acredita que a discussão do aborto não deve ser travada no campo do direito penal, mas no da saúde pública. “Aí, dentro desse campo da saúde pública, será possível trabalhar a subjetividade de cada mulher, as circunstâncias de cada caso”, afirma. 

Entenda: Por que o aborto não deve ser legalizado no Brasil

Presidente da ONG Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia pensa que o principal trabalho a ser realizado é um trabalho preventivo, para que não aconteça a gravidez inesperada, em especial entre jovens. Um trabalho de acolhimento, em que a mulher pudesse, efetivamente, aconselhar-se e encontrar soluções para superar o momento difícil. Ela também afirma que a perspectiva da saúde pública não exclui o lado penal do tema, por se tratarem de discussões diferentes. 

“O aborto tem ser discutido na perspectiva penal, porque se trata de um crime, e também tem que ser discutido do ponto de vista de saúde pública, porque o procedimento sempre é lesivo, não só para a criança, mas também para a mãe”, diz. 

Já para Angela Martins, que tampouco apoia a legalização do aborto, é preciso procurar soluções que sejam verdadeiras e humanas, como a desburocratização da adoção. “Quantas crianças poderiam ser adotadas no mundo se o processo fosse facilitado?”, indaga. 

Questão no Supremo 

A descriminalização do aborto aguarda julgamento no plenário do STF. Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), a ADPF 442 pede pela descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gestação. Ainda não há previsão para julgamento e, levando em conta que se trata de um ano eleitoral, é difícil que a matéria seja pautada ainda em 2018. De qualquer forma, Angela Martins se diz esperançosa com a questão. 

“O julgado recente do caso Rebeca, pela ministra Rosa Weber, foi muito lúcido. E hoje, se fizéssemos um plebiscito sobre o tema no Brasil, o aborto não passaria. A maioria dos cidadãos não quer, e o Supremo não pode decidir algo tão grande em nome de um partido”, opina. 

Lenise, por sua vez, pensa que, com a atual formação da Corte, o assunto seria aprovado. A presidente da Brasil Sem Aborto lembra que o ministro Luís Roberto Barroso advogou, inclusive, para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde no caso dos fetos anencáfalos.

À época, o então advogado afirmou que a decisão deu às mulheres “o direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher”. 

“Agora, o STF não tem demonstrado muito ‘apetite’ para debater o assunto. Mais do que analisar no mérito, penso que o tribunal tem reconhecido que esse é um assunto que cabe ao Legislativo”, finaliza. 

Conheça a lei 

Código Penal 

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento 

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: 

Pena - detenção, de um a três anos. 

Aborto provocado por terceiro 

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: 

Pena - reclusão, de três a dez anos. 

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: 

Pena - reclusão, de um a quatro anos. 

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência 

Forma qualificada 

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

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