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 | Henry Milleo / Agência de notícias  Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo / Agência de notícias Gazeta do Povo

Quando se lê que crianças foram feitas prisioneiras durante a Ditadura Militar – como aconteceu com Carlos Alexandre Azevedo, preso quando tinha apenas 1 ano e 8 meses, em 1974 – a reação normal é de indignação. Cadeia não é lugar de criança, afinal. Mas o que muitos não sabem é que 30 anos após a abertura política no Brasil, centenas de bebês estão atrás das grades. Talvez não pelos mesmos motivos da época do regime, mas ainda sim privados de liberdade numa época da vida que é determinante para seu futuro como pessoas. 

Divulgado em janeiro, com dados coletados até o dia 31 de dezembro de 2017, o Cadastro Nacional de Presas Grávidas e Lactantes, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indica que, no país, 622 detentas estão nessa situação. 373 esperam o nascimento do filho, enquanto 249 estão amamentando. O número engloba tanto presas provisórias – aquelas que aguardam julgamento – quanto condenadas, sem especificar o número exato de cada uma delas.

Em relação às mulheres grávidas e lactantes que se encontram presas preventivamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na terça-feira (20), ao conceder um habeas corpus coletivo, que a detenção deve ser convertida em prisão domiciliar enquanto estiverem grávidas e amamentando. Mães de crianças com até 12 anos ou com deficiência, independentemente da idade, também são beneficiadas com a decisão, que não é um salvo conduto para o crime – cada caso deve ser analisado por um juiz (leia mais abaixo). O número total de beneficiadas por passar de 4 mil detentas. 

Mas a decisão não atinge mulheres já condenadas – nesses casos, aplica-se a Lei de Execução Penal. Se tiver sido presa grávida e der à luz enquanto cumpre pena, a lei autoriza que a detenta permaneça com seu filho, no mínimo, até os seis meses de vida da criança. O tempo máximo varia conforme a penitenciária. Ao sair do presídio, o bebê é encaminhado ao marido, a parentes, amigos da família ou, em último caso, a uma casa de acolhimento.

Isso porque, ao ser condenada, o poder familiar e a guarda da mulher em relação aos filhos ficam suspensos. A LEP também prevê que unidades prisionais femininas tenham uma seção para gestantes e parturientes e uma creche para abrigar os pequenos, “com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”. 

Além disso, a própria Constituição Federal, no inciso L ao artigo 5º, diz que “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. 

Dilema

Aqui, surge um dilema. Ao mesmo tempo em que a mulher cometeu ao crime e deve arcar com a punição que lhe foi imposta, é justo que um bebê seja privado de sua liberdade por algo que sequer fez? A questão é delicada também porque a gestação e a primeira infância das crianças são períodos decisivos de formação neurofisiológica, que podem ser impactada irreversivelmente por fatores externos. 

O Instituto Alana, organização sem fins lucrativos que se dedica a questões relacionadas à infância, levou essas considerações ao Supremo em sua manifestação como amicus curiae [amigo da corte]. “O embrião ou feto reage não só às condições físicas da mãe, aos seus movimentos psíquicos e emocionais, como também aos estímulos do ambiente externo que a afetam”, escrevem na petição. 

“Um dos principais fatores responsáveis por esse dano é o estresse tóxico, fruto de situações que envolvem um sofrimento grave, frequente, ou prolongado, no qual a crianças não têm o apoio adequado da mãe, pai ou cuidadores. No caso de crianças com mães encarceradas, o estresse tóxico decorre do ambiente prisional, que não é capaz de acolher a criança, e da situação precária que a mulher encarcerada vivencia”, completam. 

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Essa preocupação especial com a dignidade dos menores se reflete na Constituição Federal, que inaugurou no Brasil a doutrina da proteção integral da criança, reforçada com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o direito à criação e à educação no seio da família. Outro ponto enfatizado pela lei é a liberdade do menor, maculada nesses casos de prisão da mãe. 

Mayta Lobo, sócia-fundadora do Instituto Dialogação e professora do Unibrasil, diz não existir uma “receita” que aponte se o ideal é a criança ficar no presídio ou com parentes, por exemplo. 

“O que é prioritário? A segurança familiar ou outros direitos? Como todos os casos na infância, cada história deve ser analisada de forma particular. É preciso verificar se a criança tem uma família forte aqui fora ou se vai para uma instituição. Se for para ficar institucionalizada, é melhor ficar com a mãe do que ser cuidada por um terceiro desconhecido. Ainda, tem que ver se a mãe tem interesse no cuidado da criança”, diz. 

Mesmo assim, a professora reconhece que há casos, no mínimo, curiosos. Mayta relata que em um trabalho realizado na creche da Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), em Piraquara, deparou-se com recém-nascidos e até crianças de 6 anos de idade que não sabiam o que era uma praça, um supermercado. “Um ambiente tão restrito é prejudicial na criação, causa um choque muito grande no desenvolvimento”, afirma. 

Vale lembrar que o Brasil é signatário das Regras de Bangkok, documento da Assembleia Geral da ONU que contém diretrizes para o tratamento de mulheres e que dispõe que as penas não privativas de liberdade serão prioritárias para gestantes e mulheres com filhos pequenos, a não ser quando a prisão tenha ocorrido por crime grave ou violento ou a mulher represente ameaça às próprias crianças. O STF caminhou nesse sentido, ao repisar essas condicionantes à concessão do benefício. 

Quando a melhor política pública é a prisão 

Independentemente da legalização ou não das drogas – e de quais e em quais quantidades – houve uma explosão de mulheres presas por crimes relacionados na Lei 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas. Grande parte do contingente de mulheres presas gestantes, grávidas ou com filhos pequenos foi parar ali porque antes caiu nas garras do tráfico. 

De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), se em 2000 havia 5,6 mil mulheres presas no Brasil, em 2016 o número saltou para 44,7 mil, um aumento de quase 700%. Hoje, cerca de 60% do total estão encarceradas por crimes relacionados na Lei de Drogas. Muitas delas atuam como “mulas”, transportando os entorpecentes dentro do estado e em territórios vizinhos, ou convivem com pequenos traficantes. 

Nesse cenário, as alternativas iriam pelo caminho do fortalecimento da família, do amparo educacional e da valorização feminina, visto que muitas mulheres se envolvem no crime ou por uma questão de dependência do companheiro. “Não existem respostas simples. As coisas não vão mudar da noite para o dia. Elas só vão mudar se a gente for do eixo repressivo para os eixos educacional e de saúde”, opina João Marcos Buch, juiz da Vara de Execução Penal (VEP) e corregedor do Sistema Prisional da comarca de Joinville (SC). 

O que também choca é o fato de muitas dessas presas assumirem que, ainda que tenham tido outros filhos antes, só conseguiram exercer plenamente a maternidade na prisão. Foi o que escutou Ana Gabriela Mendes Braga, professora de Direito Penal na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em várias das pesquisas de campo sobre o tema que realizou, inclusive durante a coordenação do estudo “Dar à Luz na Sombra” (2015), do Ministério da Justiça. 

“Quer dizer, a gente faz toda uma luta antiprisional, falando do impacto negativo que a prisão tem, mas ouve isso. Imagina, você parar seis meses para se dedicar só ao seu filho. No ‘mundão’ isso é praticamente impossível e, lá dentro [na prisão], de alguma forma, acontece, elas acabam tendo essa oportunidade”, conta a pesquisadora, que também já se deparou com gerações de mulheres que nasceram na prisão e, na vida adulta, foram presas grávidas. 

Uma juíza de uma comarca no interior de São Paulo, que preferiu não ser identificada na reportagem, conta que a maioria esmagadora dessas mulheres vêm de uma situação de vulnerabilidade, de uma estrutura difícil. Muitas, com gravidez avançada, vão realizar o primeiro pré-Natal somente na penitenciária. 

“Elas ficam seis meses com a criança, 24 horas por dia, numa ala destinadas às mães. Lá, elas têm uma alimentação especial, uma refeição a mais. Mas, claro, é uma penitenciaria. Não é um ambiente adequado para uma criança. Só que, às vezes, mulher e criança estão melhor na prisão do que na rua, porque na rua está muito ruim”, relata. 

Recrutadas pelo tráfico 

Na terça-feira (20), a Segunda Turma do STF concedeu Habeas Corpus coletivo a todas as mulheres que se encontram presas preventivamente, estão grávidas ou são mães de crianças com até 12 anos de idade ou com deficiência. Com a decisão, o encarceramento será convertido em prisão domiciliar, possibilidade trazia pelo Código de Processo Penal (CPP), enquanto perdurar a condição. 

A Corte deu prazo de até 60 dias para os tribunais brasileiros identificarem as presas que têm o direito e conceder o benefício. As exceções são mulheres que praticaram crimes mediante violência ou grave ameaça, ou contra seus descendentes, e também aquelas que perderam a guarda do filho por motivos que não a prisão. Outras situações excepcionais devem ser justificadas ao STF pelos juízes que denegarem o benefício. 

Embora a decisão vincule as mulheres que se encontram atualmente nessa situação, ela demonstra o posicionamento do STF sobre o assunto – os juízes já vinham concedendo Habeas Corpus individuais nos mesmos moldes. Também é provável que a Corte, em breve, edite uma Súmula Vinculante a respeito do tema. Na prática, esse tipo de súmula tem força de lei. 

Diversas vozes se levantaram para criticar a decisão do tribunal, com base na ideia que o crime organizado passaria a recrutar ainda mais mulheres nessas condições para o tráfico de drogas, dada essa espécie de “flexibilização da pena”. 

Ainda que reconheça a possibilidade, Mayta Lobo afirma que não se pode violar o direito de uma criança inocente com base em suposições – mesmo que prováveis. João Marcos Buch, na mesma linha, diz que a situação deve ser analisada sob a ótica do direito da criança, não só de ter sua mãe em casa, mas de não ficar presa. 

Ana Gabriela lembra que esse é o mesmo argumento utilizado para reduzir a maioridade penal – já que o tráfico estaria recrutando menores para escapar mais facilmente da lei. Ela acredita, contudo, que o tráfico vai continuar recrutando pessoas, mulheres grávidas, mães ou não, como sempre fez. A questão central será discutir como combatê-lo. 

A juíza do interior de São Paulo que preferiu não se identificar, no entanto, embora reconheça a boa intenção do Habeas Corpus, fica receosa com a medida. Segundo ela, na comarca onde atua, a maioria esmagadora das mulheres encarceradas com base na Lei de Drogas foi presa tentando entrar com entorpecentes nas penitenciárias, e quase todas estão grávidas ou têm filhos pequenos. 

“Elas introduzem a droga na vagina e tentam entrar. Muitas vêm visitar os maridos, companheiros, e outras vêm aliciadas”, afirma. Ela lembra que, na prisão, droga, em especial maconha e cocaína, é moeda de troca. O consumo no estabelecimento gera o endividamento de presos e o fortalecimento do crime organizado, alimentando o problema. 

Segundo ela, quando colocadas na domiciliar, muitas delas e as crianças vão voltar para uma situação de risco, em ambientes sujos e sem amparo, sem falar na dificuldade de fiscalização desse tipo de prisão aqui no Brasil. A juíza defende que se trabalhe com prevenção, porque, “depois [da prisão], ninguém quer ajudar família de preso”. As respostas não são nada fáceis.

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