Uma moradora de São Paulo sofreu críticas na internet, no último fim de semana, após divulgar um anúncio em que oferecia moradia em troca de serviços domésticos. Patrícia Gomes Benfica Malizia, uma designer de 44 anos, pede que a pessoa saiba cozinhar e cuide de uma criança pela manhã para poder morar em um apartamento “descolado”. Ela chegou a ser acusada de propor trabalho escravo, mas também foi procurada por muitas pessoas interessadas na parceria. E há quem questione a judicialização excessiva da vida se o arranjo for bom para os dois lados.
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No anúncio, a designer oferece a “moradia compartilhada” como uma “ótima oportunidade” para estudantes ou pessoas que queiram começar a vida em São Paulo e dá um mote feminista: “juntas somos mais fortes”. Ela explica que o filho de sete anos que vai à escola das 13h às 19h e precisaria de alguém que pudesse cuidar dele pela manhã, dar o almoço e colocá-lo no transporte escolar. Se a pessoa cumprir os requisitos – que são gostar de criança, saber cozinhar e manter a casa organizada –, “troca feita!”.
O anúncio gerou comentários indignados como "Dorme na Casa Grande ou na Senzala?" e avisos de que essa seria uma prática que resultaria em trabalho análogo à escravidão, já que demandaria prestação de serviço sem remuneração. Mas também houve quem se mostrasse mais compreensivo com a proposta argumentando que, se alguém quer morar bem e topa a proposta, não haveria problemas em fazer esse tipo de acordo.
Legislação trabalhista
Mesmo que o combinado seja feito e pareça muito vantajoso para as duas partes, a “troca” pode virar um contrato de trabalho. O advogado trabalhista José Lúcio Glomb explica que Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê que o contrato de trabalho pode ser firmado de forma expressa ou tácita. “A legislação brasileira estabelece que, se houver uma prestação de serviço em que alguém está sujeito às ordens de uma outra pessoa mediante uma retribuição, isso pode caracterizar o vínculo empregatício”, explica Glomb, que já foi presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR).
Para o doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e advogado trabalhista Nasser Ahmad Allan, quem faz um anúncio oferecendo moradia em troca de serviços domésticos “perdeu o pudor” e está tentando fugir dos encargos trabalhistas. “As pessoas não podem dispor da lei. Uma coisa é alugar o quarto e quem aluga se dispor a ajudar em alguns afazeres. Outra é exigir tarefas diárias. Isso é relação de emprego sem salário”.
Na legislação trabalhista brasileira, o contrato de trabalho é definido por algumas características, como subordinação, não eventualidade e onerosidade. Os entrevistados observam que, no caso proposto, haveria subordinação – a pessoa deveria satisfação a quem prestaria os serviços – e também seria uma situação de não eventualidade – os cuidados com a criança seriam diários. E, mesmo sem haver um pagamento em dinheiro, a onerosidade estaria configurada pela moradia dada como contrapartida.
Quem contrata uma empregada doméstica deve, além do salário, pagar décimo terceiro e férias. E, com a PEC das Domésticas, que entrou em vigor em 2015, esse tipo de trabalhador também passou a ter direito a Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e horas extras – o que acabou por restringir bastante os casos em que empregados moram nas casas das famílias.
Em entrevista ao jornal Extra, Patricia acabou admitindo que a ideia seria economizar com os encargos trabalhistas mesmo: “Não posso pagar uma babá registrada, com o décimo terceiro e férias. Foi aí que surgiu a ideia. No apartamento, caberia muito bem mais uma mãe e uma criança, que dividiriam o quarto com meu filho. Por que uma mãe não pode ajudar a outra?”. Ela também disse que tem planos de criar uma moradia compartilhada, em que mães solteiras possam criar suas filhas juntas.
Exterior
Nos debates das redes sociais também há exemplos de pessoas que vão morar em outros países e, para poderem bancar os estudos e viverem em cidades caras, como Nova York, aceitam ajudar em tarefas domésticas nas casas de pessoas que as recebem.
A professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso aponta essa como uma alternativa vantajosa: a legislação desses países é mais flexível e permite que prevaleça o que for acordado entre empregador e empregado, ou mesmo uma relação de troca que não seja exatamente um emprego. “O único país que impede a autonomia da vontade é o Brasil”, diz a jurista.
Ela também cita como exemplo aqueles que vão aprofundar os estudos ou querem começar a vida no exterior: “Quantas pessoas vão estudar em outros países e buscar uma oportunidade e conseguem se manter desta forma? Elas ficam em uma casa de família, dedicando algumas horas a olhar as crianças, cuidar do jardim, passear com o cachorro ou cuidar do gato...”.
Mas, mesmo lá fora, nem tudo são flores. Em março deste ano, o site Politico publicou uma reportagem sobre o programa au pair – que tem como objetivo promover o intercâmbio cultural entre família americanas que recebem jovens estrangeiras para trabalharem como babás, elas são remuneradas e devem receber moradia e alimentação dessas famílias.
Na reportagem, jovens que participaram do programa dizem ter sido tratadas como escravas, com situações restrição de comida na casa em que viviam, ou monitoramento pela família do uso de métodos contraceptivos. Na mesma matéria, o Departamento de Estado, que coordena o programa nos Estados Unidos, afirma que se tratam de “incidentes isolados”.
Riscos
Mas, ainda que esse tipo de arranjo funcione no exterior e que aqui no Brasil possa ganhar contornos de descolado para quem quer resolver seus problemas pessoais, sempre haverá um risco de processo trabalhista ao fim da “relação de troca”.
Glomb ressalta que, se no exterior a prática de troca de casa por serviços domésticos é aceitável, no Brasil, o que vale perante a Justiça é a legislação vigente. Além disso, assim como há os acertos de bom grado, podem haver os arranjos com exploração. “Pode ter uma boa fé imensa, mas, por outro lado, pode haver os que façam de má fé. Por isso, a legislação é protetiva”.
Nasser Allan explica que se a pessoa que aceitar o acordo nunca reclamar seus direitos, “a coisa fica por isso mesmo”. Por outro lado, ele apela para o argumento moral: “Tem alguns padrões mínimos de civilidade, que mesmo que a pessoa aceite se submeter, não se pode adotar”.
E até mesmo Maristela Basso, que avalia que o acordo poderia ser bom para as duas partes, alerta para os riscos que o suposto anfitrião teria de acabar respondendo um processo no futuro. “Eu diria como advogada ou como amiga: aqui não pode, vai dar uma dor de cabeça absurda”.
Conheça a lei
CLT
Art. 443 - O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito e por prazo determinado ou indeterminado.
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