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Ao microfone, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, em votação de emendas para o texto constitucional. Sentado à esquerda, o deputado relator Bernardo Cabral, e em pé o então senador Fernando Henrique Cardoso. | Célio Azevedo /Arquivo Senado Federal
Ao microfone, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, em votação de emendas para o texto constitucional. Sentado à esquerda, o deputado relator Bernardo Cabral, e em pé o então senador Fernando Henrique Cardoso.| Foto: Célio Azevedo /Arquivo Senado Federal

Abril de 1987. A Assembleia Constituinte tinha recebido 122 emendas populares, com mais de 12 milhões de assinaturas. Para as sugestões encaminhadas pela população serem incorporadas à nova Constituição, no entanto, precisavam ser aprovadas no plenário. O presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, tinha pressa: queria aprovar o texto final ainda no mesmo ano.

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No último fim de semana daquele mês, cerca de 30 servidores que integravam um grupo de trabalho montado especialmente para cuidar das emendas populares levaram a papelada para casa. Eles precisavam definir para que comissões as sugestões deveriam ser encaminhadas. Na segunda-feira, de volta à Câmara dos Deputados, eles ainda estavam longe de concluir o trabalho. Só voltariam para casa na madrugada de quinta-feira, depois de quase 72 horas de atividade ininterrupta, sem dormir. 

“Se entrasse uma emenda popular sobre o funcionamento do Congresso, a gente tinha que ler e decidir para qual subcomissão encaminhar. Mas havia propostas com mais de uma ideia ou assunto, então era difícil saber o que fazer. E o Dr. Ulysses lia na íntegra todas as sugestões e depois perguntava, questionava, sugeria alterações no encaminhamento”, lembra Mozart Vianna, ex-secretário-geral da Mesa da Câmara dos Deputados, que na época presidiu o grupo de trabalho e foi um dos que passaram quase três noites em claro.

As disputas políticas já estavam presentes antes mesmo do início dos trabalhos. O presidente José Sarney encaminhou um anteprojeto elaborado por uma comissão de notáveis para servir de base para a nova constituição. Mas sob a liderança de Ulysses Guimarães, e com a relatoria de Fernando Henrique Cardoso, os constituintes rejeitaram a proposta e decidiram que o texto começaria do zero, baseado nas emendas populares.

E o povo foi protagonista. Durante as atividades da Assembleia Constituinte, o Congresso Nacional recebeu em média cerca de 10 mil visitantes por dia, representando segmentos diversos da sociedade interessados em contribuir com o novo texto e acompanhar as discussões. Os grupos indígenas eram os que mais despertavam a atenção, já que circulavam entre as comissões com a vestimenta tradicional, de cocar e tudo.

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Ao fim de 1987, o trabalho parecia concluído. O problema era conseguir aprovar o texto. Constituintes mais conservadores se recusavam a votar a favor de algumas propostas consideradas “socialistas demais”. O presidente José Sarney insistia em garantir, para ele mesmo, um mandato de cinco anos. Em troca, aceitaria o regime parlamentarista. 

Quem levou a proposta de Sarney aos líderes do partido do presidente, o PMDB, foi o jurista Miguel Reale Júnior. “Mário Covas, José Serra e Pimenta da Veiga não aceitaram”, lembra Reale. A briga fez Sarney buscar apoio entre outros parlamentares do centro. Nascia aí o Centrão, que até hoje tem influência direta nas votações do Legislativo e é seduzido pelo poder Executivo em nome da governabilidade.

Na época, os ânimos se acirraram: Antonio Carlos Magalhães chegou a segurar Francisco Dornelles pelo colarinho, tentando forçá-lo a votar a favor do mandato de cinco anos. 

Para garantir que a redação final do artigo sobre as Forças Armadas ficasse como queriam os militares, o general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército, mandou oficiais ao encontro do deputado Bernardo Cabral, relator da Comissão de Sistematização, a mais importante da constituinte.

A preocupação dos militares já vinha de antes. “A emenda das Diretas Já foi aprovada com o Congresso cercado pelas tropas do Exército. Diziam que era para proteger os parlamentares, mas a ideia era isolá-los da população e intimidá-los”, recorda Vianna.

No início de 1988, o trabalho da Assembleia Constituinte foi retomado sob tiroteio cruzado entre o Centrão e as forças lideradas por Ulysses Guimarães, que superou o impasse com uma solução até hoje essencial no processo legislativo: as emendas aglutinativas. Quando os textos chegavam ao plenário, não havia consenso sobre todos os artigos, mas o prazo de alteração das emendas já havia se encerrado. Então, os constituintes passaram a rejeitar algumas emendas e a fundir outras, criando um novo texto, graças a acordos fechados na hora, no plenário.

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Outra ferramenta fundamental para garantir a aprovação da Constituição de 1988 foram os destaques. Os artigos sem consenso eram destacados do texto original para ser regulamentados depois da promulgação, por leis específicas. Eram mais de 240 dispositivos. Até hoje, trinta anos depois, mais de uma centena aguarda regulamentação.

Essa foi a solução encontrada para equilibrar tantos interesses conflitantes em uma constituição que visava garantir, acima de tudo, as eleições diretas e a participação da população na consolidação de direitos e garantias fundamentais como cláusulas pétreas, depois de um longo período de restrição absoluta à liberdade e à democracia, iniciado em 1964.

O trabalho foi tão intenso que uma das memórias mais marcantes desse período para quem acompanhou de perto os trabalhos da constituição era o tempo que Ulysses Guimarães passava conduzindo as sessões no plenário da Câmara, lendo apressado todos os dispositivos para encaminhá-los à votação, um atrás do outro, sem interrupção. Até durante almoços e jantares, quase sempre em um mesmo restaurante de Brasília, rodeado de constituintes, Ulysses assinava questões de ordem e outros documentos para dar sequência às votações até o momento que voltava para o Plenário, onde emendaria mais uma sequência de horas a fio presidindo as sessões.

“Ele bebia muita água, falava tão rápido que quase não dava pra entender, mas não fazia xixi nunca! Não parava nem para ir ao banheiro”, lembra Jairo Bisol, que suspendeu uma viagem de estudos para o exterior para acompanhar o pai, o então senador Paulo Bisol (PMDB-RS), durante a constituinte. 

A maior queixa de pai e o filho foi a Assembleia Constituinte não ter sido eleita de forma independente do Congresso Nacional.

“Era uma contradição em termos. Era o Congresso, no sentido de afirmação de uma ordem, mas o pressuposto de uma constituinte é a negação da ordem. Tinha que ser uma constituinte representativa da sociedade, não da velha elite política. Por isso a Constituição ficou no meio do caminho”, alega Bisol. 

Para Mozart Vianna, no entanto, o Brasil vive o mais longo período democrático da História graças à Constituição de 1988, que conseguiu equilibrar a relação de forças políticas e os interesses da sociedade. “E está funcionando, teremos mais uma eleição direta.”

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