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| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo/Arquivo

Os brasileiros estão deixando de se vacinar. Os motivos são vários, da queda na divulgação das campanhas, por parte do Ministério da Saúde, a problemas práticos, como postos de saúde que funcionam apenas em horário comercial. Há, também, ainda que em menor número, o movimento antivacina.

Embora não haja dados a respeito do número de adeptos, no Brasil o movimento tem sido impulsionado por grupos nas redes sociais, dedicados a discutir o assunto, e correntes, com informações inverídicas, que circulam nos aplicativos de mensagem instantânea. Em busca no Facebook, a reportagem encontrou uma comunidade com mais de 11 mil membros – em sua maioria, pais. No espaço, compartilham histórias pessoais e relatos de terceiros, grande parte replicados de páginas e sites internacionais, sobre supostas reações e até mortes ligadas à vacinação.

Nesse ponto, surge uma questão muito delicada. Ao mesmo tempo em que o direito à liberdade, inclusive de escolha, é garantido constitucionalmente aos brasileiros, o direito à saúde – e, mais ainda, à vida – das crianças que não forem vacinadas pode ser colocado em risco justamente por uma escolha dos pais. Caberia, aqui, uma ponderação?

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Advogada especializada em Direito Médico e membro da Comissão de Direito à Saúde da OAB-PR, Renata Farah lembra que há uma série de vacinas que o Programa Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde, recomenda que sejam tomadas durante a infância. E o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no parágrafo primeiro de seu artigo 14, traz que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. De acordo com Renata, essa determinação do ECA está relacionada com uma questão de responsabilidade social coletiva. 

“Nesse caso, uma opção sua pode causar danos a terceiros. O jurídico da liberdade deve ser ponderado. Não se trata de um direito do pai em escolher, mas do direito da criança de receber a vacina. Os pais não podem dispor desse direito do filho”, afirma. 

No mesmo sentido, Marcus Vinicius Macedo Pessanha, coordenador da área de Direito Público do Nelson Wilians e Advogados Associados, entende que enquanto a um adulto é permitido tomar atitudes que possam prejudicar a própria saúde (fumar, por exemplo), as crianças, numa idade tenra, não têm esse discernimento, esse poder de autodeterminação. Nessa fase da vida, são os pais que devem manter a criança saudável. Além do ECA, a Constituição Federal prevê, no artigo 227, que família, sociedade e Estado devem assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde, dentre outros direitos.

Para Pessanha, os pais que se recusarem, por motivos injustificados, a vacinar seus filhos, no tocante aos casos recomendados pelo Ministério da Saúde, podem ser responsabilizados legalmente, se houver uma denúncia de maus tratos ou de negligência. 

‘Caso eles [os pais] não tenham a capacidade de agir da forma esperada para pais adultos e maduros, com o objetivo de fazer crescer uma criança saudável, eu entendo que o Ministério Público ou outros órgãos de controle podem intervir nessa família, na autoridade parental, a fim de buscar uma situação de equilíbrio’, opina. 

Dependendo do caso concreto, a sanção poderia ir da perda provisória do poder parental, no campo civil, até um ano de detenção, decorrente do crime de maus tratos. 

Se houver um motivo científico para não vacinar a criança – alergias ou outros problemas de saúde, por exemplo –, Renata recomenda que os pais tenham sempre um laudo médico atualizado que explique a situação. Não se trata, porém, de uma escolha, mas sim de uma impossibilidade justificada.

Liberdade religiosa 

Nos grupos sobre o tema no Facebook, o que se observa é que há pessoas que rejeitam as vacinas por motivos religiosos. “É muito importante que nos lembremos do mal que as vacinas fazem à alma também”, escreve uma internauta, enquanto outra complementa que “nossa conexão com o Criador, o Deus Eterno, se dá através do nosso cérebro, dos nossos pensamentos”. 

Assim como o direito à saúde e à vida, a liberdade religiosa também é garantida constitucionalmente no Brasil. Nesse caso, a crença dos pais justificaria a opção por não vacinar os filhos, mesmo nos casos obrigatórios? 

Professor de História do Direito da Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi), Marcelo de Azevedo afirma que a liberdade religiosa é um direito “ultra-ímpar”, que deve ser analisado sob duas perspectivas. A primeira, segundo ele, está ligada ao cerne da vida religiosa, que trata da doutrina, rito e organização da crença. É o “coração” da expressão religiosa. A segunda diz respeito aos pontos em que pode haver interferência do Estado, como a necessidade de autorização para construir um templo ou realizar uma passeata, por exemplo. 

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Em relação às vacinas, Azevedo pensa que, embasadas pela liberdade religiosa, as pessoas podem ser livres para tomar a decisão de não vacinar, desde que haja bom senso e razoabilidade. 

“Se não for um caso de doença grave, em que a família, outras pessoas, não são colocadas em risco, aí me parece razoável [não vacinar]. Há elementos de fato, empíricos, que dão sustentação a essa possibilidade de risco muito grande, ou se trata de pura ‘histeria’[querer vacinar]?” questiona. 

A advogada Renata Farah, por outro lado, afirma que o melhor interesse do menor deve se sobrepor a questões religiosas, vez que tanto a doutrina quanto a legislação brasileira adotam o princípio da proteção integral da criança e do adolescente. Marcus Vinicius Pessanha tem opinião semelhante: 

“Os pais têm liberdade de passar para a criança sua fé, seus costumes. Toda família tem expectativas em relação à maneira como criar seus filhos, e isso não pode ser retirado deles. Mas temos critérios objetivos do que seria bem-estar – saúde, alimentação, conforto. Essa autoridade não deve ser absoluta, não nesse estágio de evolução social”, pondera. 

Requisito para matrícula 

Em julho, entrou em vigor no Paraná a Lei 19.534/18, que prevê a apresentação da carteirinha de vacinação atualizada como requisito obrigatório para a matrícula de estudantes tanto em estabelecimentos públicos quanto privados. Paraíba e Mato Grosso também adotaram medidas semelhantes recentemente. 

Renata Farah não considera a medida ilegal. Segundo a advogada, “ao levar uma criança não vacinada para a escola, há o risco de contaminação coletiva; você coloca em risco pessoas inocentes”. Pessanha também concorda com esse tipo de determinação, e opina que “deveria ser implementada em todos os estados de forma a efetivar o acesso à saúde por todas as crianças”. 

Azevedo, por outro lado, invoca novamente a questão do bom senso, lembrando que às crianças também é garantido o direito básico à educação. “Você vai impedir a criança de frequentar a escola por conta disso [não estar com a vacinação em dia]? Salvo se houver uma situação comprovadamente grave. Numa circunstância que coloque em risco a saúde pública, tudo bem”, finaliza.

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