Um homem fotografa um cartaz oferecendo um "Trump-Kim Chi" nasi lemak, um popular prato local, em um restaurante em Cingapura| Foto: NICHOLAS YEOAFP

Um encontro vai chamar a atenção do mundo no dia 12 de Junho; embora seja o Dia dos Namorados no Brasil, não se trata de um encontro romântico. Kim Jong-un, o ditador norte-coreano, e Donald Trump, presidente dos EUA, vão se encontrar pessoalmente em Cingapura. Na mesa, o futuro de uma das relações-chave no complicado tabuleiro asiático de xadrez. Não se pode tratar o encontro como um mero reality show, um encontro exótico, ainda mais com o ingrediente da presença do ex-jogador de basquete Dennis Rodman; tampouco ser encarado com o entusiasmo de líderes de torcida pelo seu político do coração. Pautas e interesses importantes estarão em discussão. 

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Depois de um exagerado otimismo após a primeira cúpula entre as repúblicas coreanas, algo que foi alertado aqui nesse mesmo espaço, o encontro entre Kim e Trump correu o risco de não acontecer. De fato, ele chegou a ser cancelado, via uma carta pública de Trump. O cancelamento foi consequência de, por um lado, declarações consideradas agressivas pelo Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton, que afirmou que um plano ideal seria similar ao feito com a Líbia em 2003; deve-se lembrar do destino que teve Muamar Kadafi, então ditador líbio que foi morto por rebeldes. Do outro lado, além de condenar as declarações de Bolton, a Coreia do Norte cancelou uma cúpula intercoreana de alto nível. 

O governo de Pyongyang alegou a realização de exercícios militares conjuntos entre sul-coreanos e os EUA como uma ameaça. Isso foi visto pelo governo Trump como uma quebra de confiança, já que a Coreia do Norte teria garantido anteriormente que tais exercícios não seriam considerados uma ameaça. O encontro de Cingapura foi retomado apenas após um esforço diplomático que envolveu um encontro surpresa entre Kim e o presidente sul-coreano Moon Jae-in, e uma visita de Kim Yong-chol, das principais figuras do Estado norte-coreano, à Casa Branca; a visita incluiu a entrega de uma carta em um modelo gigante, ao estilo televisivo, causando risos em Trump. 

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Preparativos 

Sobre o momento que antecede a cúpula, cabem três destaques. O primeiro é de que Trump recebeu Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão, na Casa Branca, na última quinta-feira, dia sete de junho. O Japão é um dos mais interessados na península coreana, por uma série de motivos. O principal deles é o fato de que o Japão é uma das poucas ligações entre as duas sociedades coreanas. Melhor dizendo, o repúdio ao Japão e as décadas de ocupação japonesa, período em que os coreanos eram tratados como pessoas de segunda classe e quando foram registradas diversas atrocidades.  

Exemplo disso é a reverência, de ambos os lados, com que é tratado An Jung-geun, ativista coreano pela independência que assassinou Itō Hirobumi, primeiro-ministro japonês e então governador da Coreia japonesa, em 1909. Além disso, o Japão foi o alvo dos testes de mísseis balísticos norte-coreanos, com sua segurança diretamente afetada pelo programa nuclear. Finalmente, uma península coreana unificada seria um pesado rival econômico para o Japão no mercado internacional. Curiosamente, ao fim de seu encontro com Abe, Trump disse que cogita uma visita de Kim na Casa Branca. 

Outro destaque foi a escolha do local. Não apenas Cingapura, mas a ilha de Sentosa. De um local onde a pirataria encontrava refúgio no século 18, hoje a ilha conta com resorts de luxo, cassinos, parques de diversões e campos de golfe; ao mesmo tempo em que esses aspectos fazem Trump se sentir virtualmente em casa, podem servir de argumento pelo governo dos EUA. Apontar que, com devidos investimentos, a Coreia do Norte poderia ter aquela estrutura. Ainda há o aspecto da segurança, já que a ilha é conectada ao restante de Cingapura apenas por uma via elevada e por um teleférico, facilmente vigiada. A mesma ilha, por motivos semelhantes, sediou, em 2015, cúpula entre China e Taiwan. Para um toque de simbolismo, ali existiu um campo de concentração japonês durante a Segunda Guerra Mundial. 

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Finalmente, na véspera do encontro, Kim trocou os nomes das três principais posições militares do país: o chefe do Estado-Maior do exército, o ministro das Forças Armadas Populares e o diretor do Secretariado Político do exército. Internamente, isso se dá, possivelmente, para uma renovação de quadros, substituindo a gerontocracia que ainda predomina em certos setores da Coreia do Norte. Além de nomes mais jovens, seriam nomes mais leais à Kim, diminuindo suspeitas de um eventual golpe por parte da linha-dura militar que é contra um acordo com os EUA.

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Isso certamente será usado pela Coreia do Norte na mesa de negociações. Poderão alegar que já adotaram algumas medidas para renovação e mudança de postura do país perante o sul e perante os EUA. E também poderão argumentar, em caso de ofertas consideradas insuficientes, que não podem ceder demais, com o risco de causar uma rebelião dentro dos militares, causando o risco de um novo regime mais agressivo e belicista. Ou, pior, um conflito interno entre facções de um país que conta com armas químicas e nucleares. 

A palavra-chave anterior: Desnuclearização 

Termo já presente nas notícias, a palavra desnuclearização parece ter um significado óbvio, o que está longe da verdade. Trump e Kim terão que falar a mesma língua, no sentido figurado, e concordarem no que o termo quer dizer. Para os EUA, significa uma Coreia do Norte abrindo mão totalmente de seu programa nuclear, de suas armas nucleares já feitas, da tecnologia de enriquecimento de materiais que desenvolveu, de absolutamente tudo. 

Já para os norte-coreanos, desnuclearização implica em uma península coreana livre de armas nucleares. Pyongyang cede suas armas nucleares e os EUA se comprometem a retirar suas armas nucleares da vizinha Coreia do Sul. Além disso, o desmonte de sua tecnologia para um eventual uso pacífico de energia nuclear seria outro tema. Isso não quer dizer que isso não possa ser negociado, apenas que a barganha será maior. 

O que os EUA querem 

Washington deseja o fim do programa nuclear norte-coreano e a entrega de todo o equipamento envolvido, incluindo as ogivas já construídas. Isso soa óbvio, mas as razões desse anseio precisam ser explicadas, por contextualizarem as eventuais posições tomadas pelo governo Trump. A Coreia do Norte conjugou tanto ogivas nucleares quanto mísseis balísticos. Mesmo com ceticismo sobre a capacidade norte-coreana de atingir o território continental dos EUA, outros territórios e estados são certamente passíveis de serem atingidos, como o Havaí e as ilhas Guam. 

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Ou seja, o fim das armas nucleares norte-coreanas significa uma ameaça à menos, ao menos no campo militar, fora antagonismos ideológicos. A contenção dessa ameaça possibilita garantias e maior segurança aos seus aliados regionais, como Japão e Coreia do Sul. Principalmente, possibilita que os EUA concentrem seus esforços de política externa no Irã, um país muito maior, com maior população e ampla rede externa de aliados e de proxies. Na visão do governo Trump, a desnuclearização norte-coreana permite tanto se livrar de um adversário municiado quanto prevenir que um inimigo possivelmente mais ameaçador atinja esse potencial.  

O que os norte-coreanos querem 

A pauta norte-coreana é mais ampla, e ficou explícita no dia 21 de abril, no pronunciamento que Kim Jong-un fez para declarar o ciclo nuclear como completo. Destacou os sacrifícios feitos pela sociedade norte-coreana para o desenvolvimento de armas nucleares. Após dizer que o país contribuirá para um mundo sem armas nucleares “se o poder da Coreia do Norte for aceito no nível desejado e seja possível uma garantia confiável de segurança do regime e do povo”, conclui afirmando que agora é o momento de um novo curso para a Coreia do Norte, o curso do desenvolvimento econômico. 

O programa nuclear norte-coreano será usado como uma vultosa moeda de troca. Nessa permuta, a Coreia do Norte exigirá garantias de segurança, de que a ausência de armamento nuclear não será visto como um vácuo. Ao contrário do que aconteceu na Líbia, por exemplo, o desastrado exemplo evocado por John Bolton. O que poderia assegurar que a Coreia do Norte não será atacada caberá aos envolvidos nas negociações. E esse será o mínimo necessário. 

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Nesse novo curso de desenvolvimento econômico, é de interesse norte-coreano que o país torne-se um destino de investimentos, que aumente seu intercâmbio com seus irmãos do sul e que seja dissipada a imagem de um Estado pária, com a inserção internacional do país. Esse último aspecto já tem sido afetado, com o crescente número de líderes que desejam se encontrar com Kim. De acordo com o jornal sul-coreano Dong-A Ilbo, no encontro entre Trump e Kim Yong-chol já teriam sido mencionados investimentos na área de turismo, um dos ramos em que Trump mais teve sucesso em sua carreira privada. 

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Um dos eventuais alvos desses investimentos seria a região de Wonsan, onde Kim Jong-un passou parte de sua infância. Em 2014, foi criada a Zona Turística Especial de Wonsan, com locais históricos, praias, atrações naturais e rede hoteleira. O complexo foi ampliado com um resort de ski nas montanhas próximas e com um moderno aeroporto em Kalma. A única linha naval de passageiros entre a Coreia do Norte e o Japão operava nessa cidade. Até o momento, o público alvo de tais instalações são especialmente turistas chineses. Investimentos em turismo contribuem tanto para a questão econômica quanto com a inserção internacional do país, aumentando o número de visitantes. 

A palavra-chave posterior: Verificável 

A outra palavra que tomará conta dos noticiários e declarações posteriores ao encontro é o termo “verificável”. Tanto na comunicação EUA-Coreia do Norte, quanto na comunicação com os outros atores envolvidos, como Coreia do Sul e China. Um aperto de mãos provavelmente não bastará, tudo que for negociado precisará ser colocado no papel. 

A retirada de sanções será feita de forma gradual? A Coreia do Norte precisaria completar seu desarmamento antes de qualquer folga nas sanções ou investimento, ou ambos os lados vão ceder de forma progressiva e mútua? E, mais importante e mais complexo, quem irá checar se o que está no papel está colocado em prática? Em exemplos mais concretos, quem e como vai verificar que a Coreia do Norte entregou todas suas armas nucleares? 

Se não entregar, quem vai poder fazer algo, e o quê? Se entregar, ela receberá o quê? Em quais momentos e de quem? Se uma das partes se sentir ludibriada, como poderá tratar disso? Quais as garantias para eventuais investimentos na Coreia do Norte, seja para acontecerem, seja para evitar, por exemplo, uma apropriação pelo Estado norte-coreano? Tudo precisará ser, com o perdão da redundância, verificável. 

O quê, e como, pode acontecer 

Em um extremo, o otimista, o encontro pode ser um sucesso imediato. Não se pode descartar o desenvolvimento de química pessoal entre Trump e Kim, nem que linhas de acordo já estejam estabelecidas via outros canais. Sejam oficiais, como as viagens de Mike Pompeo à Coreia do Norte, sejam extra-oficiais. A cúpula pode se estender além dos quinze minutos de fotos e holofotes da imprensa, e resultar em um acordo histórico, que envolva o estabelecimento de relações e um acordo sobre o programa nuclear. 

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No outro extremo, o encontro pode ser um desastre de relações públicas para todos os envolvidos. Sem concessões de nenhum lado, clima de desconfiança ou imediatismo, que levem à uma mera declaração protocolar ou, pior, nova troca de acusações; em nota anterior, Bolton foi chamado de “repugnante” pela Coreia do Norte. Trump poderia ser pressionado no cenário político doméstico, véspera de eleições para o Congresso, com os democratas tentando transmitir a ideia de que ele foi enganado por Kim. Por sua vez, Kim poderia ficar ainda mais isolado e ser visto como não-confiável; ainda, ser visto como ingênuo pela linha-dura militar da Coreia do Norte. 

No meio do caminho está o provável desfecho. Nas palavras do próprio Trump, dia 12 de junho será o “início de uma relação” e “começo de um processo”. Apertos de mão e sorrisos perante as câmeras, ambições pouco imediatas na mesa. Um documento que, por exemplo, abra o caminho para o fim simbólico da Guerra da Coreia e estabeleça um quadro para os próximos passos, um novo mapa do caminho, com a criação de um rapport entre os líderes e seus representantes. Um passo de cada vez pode não gerar as manchetes mais bombásticas, mas é o caminho mais seguro no momento. Como diz o chavão, o tempo dirá.