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Nem tudo é descaso ou repressão no tratamento aos imigrantes e refugiados na França. Em meio ao recrudescimento das políticas de segurança nas fronteiras e à indiferença com os imigrantes amontoados nas cercanias de Calais, o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, na sigla em inglês), associação católica internacional fundada em 1980, tem procurado combater a xenofobia crescente e a mudar o olhar francês em relação a estrangeiros em dificuldades. Criado há seis anos na França, o JRS aplica desde 2010 no país seu programa “Welcome en France” (Bem-vindo à França). A ideia é acolher estrangeiros que tenham solicitado ao governo francês o status legal de refugiado, mas que não conseguem abrigo do Estado enquanto aguardam a conclusão de seu processo.

O sistema funciona por meio de uma rede de famílias dispostas a hospedar um refugiado por um período máximo de um mês. Se neste prazo sua situação ainda não obteve um desfecho legal — seja a aprovação ou a reprovação de sua demanda —, o hóspede passará à família seguinte, e assim sucessivamente.

— Começamos há cinco anos com uma rede de quatro ou cinco famílias, e hoje há cerca de 110 famílias no total em quase 20 cidades da França, como Paris, Lyon, Marselha, Bordeaux e Toulouse. Aqui mesmo em Marselha, iniciamos em 2012 com quatro famílias, e atualmente somos 14 — diz Michel Croc, presidente do JRS francês desde 2011.

Diante do importante número de pedidos de asilo — 68 mil em 2014, com um índice de apenas 22% de aprovação (bem abaixo da média europeia de 45%) — e do esgotamento da capacidade de alojamento por parte dos serviços públicos, o projeto se tornou uma prioridade para a associação.

— Para nós, é inadmissível que pessoas em busca de asilo fiquem na rua. Nossa política é: não vamos assumir o lugar do Estado, mas vamos mostrar que pessoas, famílias, podem fazer alguma coisa — explica o presidente.

O JRS estabeleceu uma parceria com órgãos em contato com as autoridades, que repassam à associação católica requerentes de asilo sem teto. Mulheres sozinhas ou famílias geralmente obtém mais facilmente um alojamento do governo, e o JRS acolhe em maioria homens solitários.

O primeiro efeito da experiência notado pelo dirigente da associação é um alteração da percepção da família anfitriã em relação ao seu hóspede.

— É algo que verificamos com toas as famílias que participam do projeto: muda muito o olhar de todos os envolvidos, também dos amigos deles. É desta forma, aliás, que ampliamos nossa rede. As pessoas ao redor consideram a iniciativa bastante simpática e também querem participar. O requerente de asilo se torna uma “pessoa”, e também um amigo — resume.

O presidente do JRS, engenheiro aposentado, já acolheu junto com sua mulher Elisabeth, ex-professora de matemática, ambos de 65 anos, quatro refugiados em sua casa em Marselha: Ilyes, argelino de 19 anos; John, queniano, de 35; e dois paquistaneses, Ismain, de 21, e Zahid, de 35. Ele também admite ter sido pessoalmente sensibilizado pela experiência.

— Em primeiro, descartamos completamente estas pessoas como ladrões ou marginais. E, depois, nos damos conta que a fronteira entre o asilo político e a imigração econômica não é assim tão clara. Em países ditatoriais, quem não está a favor do governo pode perder seu trabalho, seus direitos. Não se pode dizer que há de um lado os exilados políticos e, de outro, os imigrantes econômicos que vêm buscar fortuna na Europa — defende.

Defesa do asilo unificado

Neste contexto, Croc condena recentes declarações de autoridades francesas e britânicas em plena crise de enfrentamento na questão dos milhares de imigrantes em Calais que procuram passar clandestinamente pelo Eurotúnel para a Grã-Bretanha.

— Os ministros do Interior britânico e francês disseram que os imigrantes creem que as ruas da Europa são pavimentadas de ouro. É algo terrível fazer este tipo de declaração — criticou.

Zihad, segundo conta Croc, é originário do oeste do Paquistão, numa área controlada por chefes locais e sob a ameaça dos talibãs. Em seu país, integrava uma ONG com um ação de escolarização de crianças, principalmente de meninas, o que desagradava especialmente os talibãs. Após os assassinatos de seu pai e de seu irmão, ele decidiu fugir. Escondido no fundo falso de um caminhão para atravessar os percursos mais perigosos da viagem, conseguiu chegar até a cidade de Lyon, e em território francês fez o pedido de asilo.

— Em seus três últimos dias de viagem na Europa, não pôde deixar em nenhum momento seu esconderijo no caminhão, e quando finalmente saiu, estava em um estado deplorável. Finalmente hospedado por uma família do JRS, desabafou: “Sou novamente um ser humano”.

Já Ismain foi até o Irã, depois de barco até a Turquia, e então chegou em Nice, no Sul da França. No Paquistão, fazia parte de uma equipe médica de vacinação, o que não era bem visto. O argelino Ilyes teve seu pedido de asilo recusado pelo governo francês, e “hoje deve estar em algum lugar da França, sem papéis,” diz Croc. O queniano John, depois de passar famílias do JRS, conseguiu uma ocupação na associação de caridade Emmaus, onde vende roupas e faz outros tipos de trabalhos.

— Tomávamos cuidado com quem era muçulmano, não servíamos carne de porco, mas eles também não pediam comida halal. Eles confraternizavam com nossos amigos. Uma vez levamos John para uma colheita de azeitonas, ele adorou. Um dos paquistaneses ajudava o filho de uma das famílias em seus deveres de inglês, jogavam futebol juntos. Foram sempre convivências felizes.

O dirigente do JRS não acredita que reforçar os instrumentos e as ações de segurança nas fronteiras é a solução para os problemas da entrada maciça de imigrantes nas fronteiras da Europa,ou dos confrontos em cidades como Calais.

— Nossa visão é a de que nenhuma ação de força vai parar os imigrantes. São pessoas que foram expulsas de seus países pelo medo ou pela fome, e nada vai fazer com que parem. Acreditamos que é necessário criar vias de acesso seguras e legais para eles.

Croc defende a instituição de “um regime de asilo unificado na Europa”.

— Como cada país tem sua própria lei em relação a isso, há a famosa regra de Dublin que obriga ao refugiado pedir asilo no país em que desembarcou. Hoje quem decide por onde o imigrante vai entrar é o atravessador. Em um regime unificado, o imigrante poderia pedir asilo neste ou naquele país por que tem família ali, ou é anglófono. E isso reduziria fenômenos como o de Calais. Sem falar que tudo isso favorece muito o extremismo na Europa.

O JRS possui apenas três funcionários assalariados na França, e funciona basicamente na base do voluntariado e de doações privadas.

— Não aceitamos ajuda financeira do Estado. Isso nos permite manter nossa liberdade de palavra — justifica Croc.

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