Militantes kirchneristas aguardam chegada da ex-presidente Cristina Kirchner à sua casa  após ser convocada para depor| Foto: EITAN ABRAMOVICH/AFP

Pela quarta vez, a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner sentou em frente ao juiz federal Claudio Bonadio para depor em um processo em que é acusada de chefiar uma suposta associação ilícita. Pela quarta vez, usou da mesma estratégia: apresentou declaração por escrito e não respondeu às perguntas do magistrado. 

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Segundo a mídia local, esta foi uma das declarações com maior teor político que a senadora já apresentou diante de um juiz. Colocou em dúvida a credibilidade de Oscar Centeno, o homem que diz ter escrito os oito cadernos que ficaram conhecidos como “cadernos de propinas”, documentos estes que deram origem à nova investigação de corrupção do governo Kirchner. Pediu que o presidente da Argentina, Mauricio Macri, fosse citado como testemunha do processo, para explicar se ele teria tido alguma participação na negociação da “delação premiada” de seu primo, o empresário Ángelo Calcaterra, preso em 1° de agosto e solto após acordo de colaboração com a Justiça. Questionou a competência de Bonadio para atuar no caso e pediu a transferência do processo para outro juizado federal em que já estão correndo outros processos que poderiam estar vinculados a esta nova investigação, alegando perseguição judicial desde que Macri assumiu a presidência em dezembro de 2015. 

O ataque a Bonadio, assim como sua estratégia de defesa, não é algo novo. O jornal argentino Clarín apontou que todas as vezes que esteve diante do juiz, Cristina questionou a competência de Bonadio. Em todas as ocasiões se deparou com a rejeição do próprio juiz e dos tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça da Argentina. Apenas uma vez, indiretamente, ela conseguiu que o processo mudasse de mãos. Foi no caso Hotesur, no qual sua sobrinha estava envolvida - mas aqueles eram outros tempos: ela ainda era presidente. Fontes especialistas em justiça argentina, ouvidas pelo Clarín, afirmam que o novo pedido tem chances quase nulas de êxito. 

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Futuro complicado

As novas delações no caso dos “cadernos das propinas”, que está sendo chamado de “Lava Jato argentina” pelas semelhanças com o caso brasileiro, complicaram ainda mais o futuro da ex-presidente. Quando o caso veio à tona e Cristina foi intimada a depor, em 1° de agosto, pesava contra ela os escritos de Centeno que informavam uma grande quantidade de dinheiro sendo levada até o apartamento do casal presidencial durante anos. Nos acordos de colaboração que seguiram à leva de prisões de empresários e funcionários do governo Kirchner, o nome de Cristina também não havia sido apontado. Mas isso mudou na sexta-feira (10), com a “delação premiada” de Carlos Wagner, dono da construtura Esuco. 

Enquanto os demais empresários “arrependidos” (termo que se refere àqueles que fizeram acordo de colaboração com a justiça) afirmaram que haviam feito doações de caixa dois para as campanhas dos Kirchner, Wagner teve que dar mais informações para a promotoria para que pudesse lograr com o acordo. 

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Desta maneira, segundo o jornalista Diego Cabot, do jornal La Nacion, o empresário se tornou a peça chave para a compreensão dos cadernos das propinas. Revelou a existência de um “clube dos empreiteiros” e de um mecanismo de cartelização em que as licitações eram distribuídas de forma coordenada entre as empresas participantes - à exemplo do que foi descoberto nas investigações da Lava Jato no Brasil. 

Ao mesmo tempo em que tirava a designação de vítima que os delatores anteriores haviam imputado a si mesmos, Wagner também envolveu diretamente a ex-presidente Cristina Kirchner, dizendo que ela estava a par das idas e vindas de Roberto Baratta pelas ruas de Buenos Aires a coletar bolsas recheadas de dinheiro, assim como foi descrito nos cadernos de Centeno. 

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Proteção

Apesar disso, Cristina ainda está segura pelo seu mandato de senadora. Conta também com o apoio da militância kirchnerista que, por mais que ela esteja envolvida em quatro processos de corrupção e um por traição à pátria, foi eleita senadora no ano passado e aparece como um dos principais nomes para a disputa presidencial do ano que vem, pouco atrás do atual presidente Maurício Macri. 

Cristina é uma importante líder da esquerda argentina. Antes do escândalo dos cadernos de propinas, estava sendo considerada por seu partido como uma das mais cotadas a concorrer à presidência em 2019, algo que não havia confirmado ainda. Agora, conta com o apoio dos peronistas para garantir que nãoperca o foro privilegiado que impede Bonadio de emitir uma ordem de prisao contra a ex-presidente. 

“Pode ser que haja provas suficientes [para que Kirchner se torne réu] e as coisas estão indo para essa direção”, afirma Alejandro Milcíades Peña, professor de Política Internacional da Universidade de York, no Reino Unido. 

Mas o professor lembrou também que isso não significa que ela será removida do cargo que ocupa ou que o caso a impedirá de concorrer nas eleições do ano que vem. “O líder da ala peronista no Senado diz que a remoção de garantias judiciais só será permitida se a sentença for firme, isto é, depois de rodadas de apelações que levam anos. Então agora a pressão está aumentando sobre ele também”, observa. 

Pedido de retirada de imunidade

O juiz Bonadio pediu que o Senado aprovasse a retirada da imunidade parlamentar de Cristina Kirchner quando o caso veio à tona. Parece improvável que este pedido seja aprovado, mas o peronismo está profundamente dividido quando o assunto é a defesa de Cristina - tanto é que deu carta branca para que os senadores tenham liberdade para votar contra ou a favor do pedido de busca e apreensão em imóveis da ex-presidente, que deve ser apreciado nesta quarta. 

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“O Senado é uma casa política e a chave para que o pedido do juiz [sobre foro privilegiado] seja aprovado está nas mãos do peronismo, uma força política de oposição que compete com o kirchnerismo. Com as novas eleições presidenciais chegando no ano que vem, o peronismo pode pensar que ao despir Cristina Fernandez de sua imunidade possa se beneficiar na corrida eleitoral”, avalia Juan Pablo Ferrero, professor de estudos latino-americanos na Universidade de Bath (Reino Unido). 

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Peña completa ao explicar que os peronistas estão divididos entre facções kirchneristas (mais esquerdistas) e não kirchneristas (mais à direita, e ideologicamente mais próximas de Macri), que também possuem divisões internas. 

“Os peronistas ainda não têm uma figura forte e visível que exerça liderança como a Cristina fez ou faz. Alguns gostariam que Cristina saísse para que uma facção mais centrista pudesse assumir, mas o kirchnerismo provou ser capaz de consolidar uma base de 20% a 25% de votos que é muito leal e não suscetível a qualquer escândalo ou acusação: enquanto Cristina for uma opção, eles vão continuar votando nela, não importa o quê”, diz o professor.

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