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As virtudes de Bergoglio

O cardeal Jorge Mario Bergoglio entrou no rol de papabili perfilados pelo vaticanista John Allen Jr., que a Gazeta do Povo divulgou com exclusividade no Brasil nos últimos dias. Para Allen, eram quatro as principais razões para que o conclave elegesse o ítalo-argentino.

1. Como teve grande apoio da última vez, era natural que muitos cardeais tendessem a pensar em uma nova tentativa.

2. Traz consigo o Velho e o Novo Mundo. É um latino-americano de raízes italianas que estudou na Alemanha. Como jesuíta, é integrante de uma comunidade religiosa internacionalmente confiável, e sua ligação com o movimento Comunhão e Libertação faz dele parte de outra rede global.

3. É atraente diante da usual polaridade da Igreja, angariando com seu afiado senso pastoral, sua inteligência e sua modéstia pessoal o respeito tanto dos ortodoxos quanto dos moderados. Também é visto como uma alma genuinamente espiritualizada, de profunda oração.

4. É também visto como um evangelista bem-sucedido. "Temos de evitar a doença espiritual de uma Igreja autorreferente", disse recentemente. "Quando se sai às ruas, como fazem todos os homens e mulheres, acidentes acontecem. Entre uma Igreja que sofre acidentes lá fora e outra adoecida pela autorreferência, não tenho dúvidas em preferir a primeira."

Depois que a poeira da eleição de Bento XVI baixou, a imprensa mostrou o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio como o principal desafiante do então cardeal Joseph Ratzinger. Um eleitor disse, depois, que o conclave teve "um quê de corrida de cavalos" entre Ratzinger e Bergoglio, e um diário anônimo do conclave que circulava pela mídia italiana em setembro de 2005 indicava que Bergoglio teria chegado a receber 40 votos na terceira votação, a que ocorreu imediatamente antes daquela em que Ratzinger foi eleito. Embora seja difícil dizer o quanto se pode levar isso a sério, o consenso geral é de que Bergoglio foi realmente um candidato de peso no último conclave. Ele chamou a atenção dos ortodoxos do Colégio de Cardeais como um homem que conseguiu segurar os avanços das correntes liberais entre os jesuítas, enquanto para os moderados era um símbolo do compromisso da Igreja com o mundo em desenvolvimento.

Crise

Ainda em 2005, Bergoglio, que estudou Teologia na Alemanha, marcou muitos pontos como um intelectual dedicado. Seu papel de liderança durante a crise econômica argentina consolidou sua imagem de conciliador e fez dele um símbolo do que os custos da globalização podem representar para o mundo pobre. A proverbial simplicidade pessoal também exerceu inegável atração – como arcebispo, escolheu viver em um apartamento simples em vez de habitar um palácio episcopal, abriu mão da limusine com motorista e preferia o transporte público. Também cozinhava suas próprias refeições.

Outra medida da seriedade de Bergoglio como candidato em 2005 é a campanha negativa feita em torno dele na ocasião. Três dias antes da abertura do conclave, um advogado argentino de direitos humanos entrou com uma ação em que Bergoglio era apontado como cúmplice no sequestro de dois padres jesuítas, sob o regime militar, em 1976. Bergoglio negou terminantemente a acusação. Houve também uma campanha por e-mail, que teria sido orquestrada pelos jesuítas que o conheciam dos tempos em que ele foi provincial da ordem. Segundo a campanha, "ele jamais sorria".

O fato é que Bergoglio esteve sempre no radar. Aos 76 anos, está fora da faixa etária que muitos cardeais consideravam ideal. Além disso, o fato de não ter conseguido transpor a barreira do número de votos necessário da última vez parecia levar alguns cardeais a crer que não valeria a pena voltar a tentar. Mas o fato é que as razões que levaram membros do colégio a tomá-lo como sério candidato em 2005 se sustentavam ainda em 2013.

Biografia

Nascido em Buenos Aires em 1936, Bergoglio é filho de um ferroviário que emigrou de Turim, na Itália, para a Argentina, onde teve cinco filhos. Seu plano original era ser químico, mas, em vez disso, ingressou em 1958 na Companhia de Jesus para começar os estudos como seminarista. Passou boa parte do início da carreira lecionando Literatura, Psicologia e Filosofia, e muito cedo era visto como uma estrela em ascensão.

Depois disso, em 1980, tornou-se o reitor do seminário no qual havia se formado. Eram os anos do regime militar na Argentina, quando muitos sacerdotes, incluindo líderes jesuítas, gravitavam em torno da Teologia da Libertação. Como provincial jesuíta (1973 a 1979), Bergoglio insistiu em um mergulho mais profundo na tradição espiritual de Santo Inácio de Loyola, ordenando que os jesuítas continuassem o trabalho nas paróquias em vez de se meterem em "comunidades de base" e ativismo político.

Embora os jesuítas sejam, em geral, desencorajados a receber honrarias eclesiásticas, especialmente fora de seus países, Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires em 1992, e depois sucedeu o adoentado cardeal Antonio Quarracino, em 1998, tornando-se arcebispo. João Paulo II fez Bergoglio cardeal em 2001, designando-lhe a igreja romana que leva o nome do lendário jesuíta São Roberto Belarmino.

Ao longo dos anos, ele se aproximou tanto do movimento Comunhão e Libertação, fundado pelo padre italiano Luigi Giussani, que às vezes discursava no grande encontro anual do grupo, em Rimini, na Itália. Bergoglio também chegou a divulgar os livros de Giussani em feiras literárias na Argentina, o que acabou gerando consternação entre os jesuítas, pois os "ciellini", como são chamados os adeptos do movimento, já eram vistos como opositores do colega jesuíta de Bergoglio em Milão, o cardeal Carlo Maria Martini. Tudo é parte do apelo de Bergoglio, um homem que pessoalmente se divide entre os jesuítas e os "ciellini" e, em maior escala, entre os reformistas e os ortodoxos da Igreja.

Preocupação social

Bergoglio apoiou o ethos de justiça social do catolicismo latino-americano, com robusta defesa dos pobres. "Vivemos na parte mais desigual do mundo, que tem crescido muito, mas feito pouco para reduzir a miséria", afirmou durante um encontro do episcopado latino-americano em 2007. "A injusta distribuição de renda persiste, criando uma situação de pecado social que clama aos céus e que limita as possibilidades de vida plena para muitos irmãos." Ao mesmo tempo, ele tende mais a se empenhar pelo crescimento em graça pessoal do que por reformas estruturais.

Bergoglio é visto como um ortodoxo inflexível em matéria de moral sexual e como convicto opositor do aborto, da união homossexual e da contracepção. Em 2010 ele afirmou que a adoção de crianças por gays é uma forma de discriminação contra as crianças, o que lhe valeu uma reprimenda pública por parte da presidente Cristina Kirchner. Ao mesmo tempo, ele demonstra sempre profunda compaixão pelas vítimas da aids; em 2001, por exemplo, visitou um sanatório para lavar e beijar os pés de 12 pacientes soropositivos.

Bergoglio também marcou pontos pela apaixonada reposta ao atentado à bomba ocorrido em 1994 no prédio de sete andares que abrigava a Associação Mutual Israelita Argentina, em Buenos Aires. Foi um dos maiores ataques a alvos judeus já registrados na América Latina e, em 2005, o rabino Joseph Ehrenkranz, do Centro para a Compreensão Judaico-Cristã, ligado à Universidade do Sagrado Coração em Fairfield, no estado norte-americano de Connecticut, louvou a liderança de Bergoglio para superar a dor do episódio. "Ele estava muito preocupado com o ocorrido", disse Ehrenkranz.

Apesar disso, depois do conclave de 2005 alguns cardeais admitiram duvidar de que Bergoglio realmente tivesse a força necessária para liderar a Igreja. Mais que isso, para os de fora da América Latina Bergoglio era praticamente um desconhecido. Uns poucos relembraram de sua liderança no Sínodo de 2001, quando ele substituiu Edward Egan, de Nova York, como relator do encontro. Isso porque o cardeal norte-americano teve de voltar às pressas para casa para ajudar as vítimas dos atentados de 11 de setembro. Na ocasião, Bergoglio deixou uma impressão positiva, mas pouco marcante.

Bergoglio pode ser fundamentalmente conservador em muitas questões, mas não é defensor dos privilégios do clero ou um homem insensível às realidades pastorais. Em setembro de 2012, ele disparou um ataque contra os padres que se negavam a batizar crianças nascidas fora do casamento, classificando a recusa como uma forma de "neoclericalismo rigoroso e hipócrita".

*John Allen Jr. é um dos mais experientes vaticanistas da atualidade. Jornalista do site norte-americano National Catholic Reporter (http://ncronline.org/), colabora também com a CNN e a National Public Radio norte-americana.

Tradução: Maria Sandra Gonçalves

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