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Mural homenageuia o capitão Harith al-Sudani, na frente da casa da família dele, em Bagdá | IVOR PRICKETT/NYT
Mural homenageuia o capitão Harith al-Sudani, na frente da casa da família dele, em Bagdá| Foto: IVOR PRICKETT/NYT

O motorista suava ao dirigir a picape Kia branca por uma rodovia de Bagdá, escorregadia por causa da chuva, em direção a um bairro movimentado, com feiras livres.

A cada solavanco, a cada curva, seu pulso acelerava. Escondidos no chassi do caminhão estavam quase 500 kg de explosivos militares que o Estado Islâmico (EI) planejava usar em um ataque audacioso a consumidores, na véspera de Ano Novo, na capital iraquiana. 

Um motorista imprudente nas estradas notoriamente caóticas do país poderia bater nele, detonando a bomba acidentalmente; uma vistoria em um dos muitos pontos de verificação de Bagdá talvez se transformasse em um tiroteio, podendo gerar uma explosão infernal. 

Mas havia outra razão para que o motorista, o Capitão Harith al-Sudani, tivesse medo: ele era espião. 

Nos últimos 16 meses ele atuara como agente, fazendo-se passar por militante jihadista do EI, passando informações críticas para uma filial secreta da Agência Nacional de Inteligência do Iraque. 

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Seus feitos eram impressionantes: frustrara 30 ataques planejados de veículos-bomba e 18 ataques suicidas, de acordo com o diretor da agência, Abu Ali al-Basri. Sudani. Ele também garantiu à agência uma linha direta com alguns dos comandantes mais graduados do EI em Mosul, Iraque. 

Segundo autoridades da agência, o ex-técnico de informática de 36 anos talvez fosse o maior espião do Iraque, um dos poucos no mundo a se infiltrar nos altos escalões do EI. 

Mas agora, neste último dia de 2016, enquanto cruzava a rodovia de quatro pistas em direção ao seu alvo, os mercados de Bagdá al Jdeidah, ele suspeitava que seu disfarce tivesse sido descoberto. 

Cada dia que passava com o EI era mais um em que arriscava a vida; naquele dia havia sido pego em uma pequena mentira, a segunda em questão de meses. 

Se a meia tonelada de explosivo plástico C4 ao seu lado não o matasse, o EI o faria. Antes de partir em sua penúltima missão, enviou uma mensagem ao pai. "Ore por mim", pediu. 

Os infiltrados 

Pouco conhecidos fora dos altos escalões das agências de inteligência iraquiana e aliadas, os Falcões infiltraram um punhado de espiões nas fileiras do EI, ajudando a expulsar os extremistas de suas últimas fortalezas urbanas no ano passado, e auxiliando na caça aos líderes do grupo, como Abu Bakr al-Baghdadi. 

Um plano iraquiano-americano recente, baseado em informações da agência iraquiana, levou à prisão de cinco oficiais do EI, escondidos na Turquia e na Síria. Autoridades iraquianas dizem que os Falcões frustraram centenas de ataques em Bagdá, tornando a capital mais segura do que já foi nos últimos 15 anos. 

O chefe da inteligência do país credita o sucesso aos infiltrados. "Um drone pode dizer quem entrou em um edifício, mas não o que está sendo dito na sala onde os homens se reuniram. Nós podemos, porque nosso povo está nessas salas", disse ele. 

Motivado por fotos de crianças mortas em ataques do EI, Sudani se tornou um agente disfarçado conhecido como Abu Suhaib. Sua missão: infiltrar-se em um notório covil do grupo em Tarmiyah, cidade perto da interseção de duas rodovias que era um centro de homens-bomba que iriam para a capital. 

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"Ele foi o primeiro a se voluntariar para esse tipo de missão. Estava fazendo uma coisa muito arriscada", disse seu irmão Munaf. 

Em telefonemas semanais, um oficial graduado do EI em Mosul ordenava que Sudani recebesse os suicidas que chegavam a Tarmiyah, saídos dos territórios da organização, ou que pegasse um veículo bomba. 

Todas as vezes ele alertava os Falcões, que iam interceptá-lo, juntamente com sua carga mortal, antes que chegasse a Bagdá. 

Um carro seguia Sudani usando equipamento de interferência para obstruir o sinal do detonador, em geral acionado remotamente, pelo celular. Comunicando-se por telefone ou sinais com as mãos, seus camaradas o direcionavam para um lugar onde pudessem desativar o explosivo. Se estivesse transportando um homem-bomba, este era atraído para fora do carro para ser preso ou morto. 

Em seguida, os Falcões encenavam explosões e transmitiam notícias falsas, às vezes alegando grandes baixas como parte da tentativa para manter o disfarce do espião. 

Desconfiança 

Em 31 de dezembro, o comandante de Mosul disse a Sudani que ele havia sido escolhido para participar de um ataque espetacular na véspera de Ano Novo, uma série de bombardeios coordenados em várias cidades ao redor do mundo. 

Sudani pegou o Kia branco no bairro de Al Khadra, em Bagdá. Como sempre, ligou para os Falcões para discutir onde iam interceptá-lo. O plano começou a se desenrolar assim que ele saiu da estrada principal da cidade rumo à casa segura dos Falcões. O telefone tocou: era Mosul querendo saber sua localização. 

Sudani assegurou que estava a caminho do alvo. O outro disse que ele estava mentindo. O espião fez força para inventar uma desculpa: disse que havia pegado uma curva errada. Assustado, chamou seus companheiros Falcões, dizendo-lhes que precisavam de um encontro mais próximo do local planejado para o ataque. 

Levou então o caminhão-bomba de volta para a estrada que levava a Bagdá Al Jdeidah. Seu irmão Munaf, que fazia parte da equipe de perseguição, usou sinais manuais para direcionar Sudani para o novo ponto de encontro. 

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Oito agentes desmantelaram a bomba, removendo o detonador eletrônico, 26 sacos plásticos de C4, nitrato de amônia e esferas metálicas do chassi e dos painéis da porta do veículo. Em minutos, Sudani estava de volta à estrada rumo ao mercado, onde estacionou a picape no local combinado. 

Pouco antes da meia-noite da véspera de Ano Novo, a mídia árabe, citando oficiais de segurança iraquianos, informou que um caminhão branco havia explodido em frente ao cinema Al Bayda, em Bagdá Al Jdeidah, sem causar baixas. 

A missão foi um sucesso. O que Sudani não sabia era que o EI havia plantado duas escutas no caminhão, permitindo que os extremistas ouvissem toda sua conversa com os Falcões. "Ele sentiu que suspeitavam dele. Só não percebemos o quanto", disse mais tarde seu comandante, o General Saad Al-Falih. 

A última missão 

No início de janeiro de 2017, o EI convocou Sudani para outra missão, que seria sua última. Foi enviado para um novo local, uma fazenda perto de Tarmiyah. A área era remota demais para ser monitorada e não havia rota de fuga fácil. 

Na manhã de 17 de janeiro, ele entrou na fazenda. Logo após o pôr do sol, a equipe dos Falcões alertou Falih que algo estava errado. 

Tarmiyah era uma fortaleza do EI, por isso foram necessários três dias para que as forças de segurança do Iraque planejassem e montassem uma operação de resgate. Um grupo de militares e policiais invadiu a fazenda. Um oficial iraquiano foi morto. 

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Quando o local foi liberado, não havia sinal de Sudani. Durante seis meses, os Falcões buscaram provas e descobriram as escutas na picape Kia. Informantes sugeriram que os jihadistas haviam levado Sudani a Qaim, cidade iraquiana controlada pelo EI e fora do alcance do governo. 

Em agosto, o grupo militante divulgou um vídeo mostrando execuções de prisioneiros vendados. Os Falcões estavam certos de que Sudani era um deles. "Eu não preciso ver o rosto para conhecer meu irmão", disse Munaf. 

Fama e dificuldade 

Na morte, Sudani alcançou um nível de fama incomum no mundo da espionagem. O comando de operações conjuntas do Iraque emitiu uma declaração sobre seu sacrifício pela nação; os Falcões publicaram uma ode à sua bravura. 

Acontece que como a família não tem o corpo, não consegue obter um atestado de óbito, pré-requisito para receber benefícios garantidos aos militares mortos. 

Seu pai, Abid al-Sudani, disse: "Tenho uma ferida em meu coração. Ele viveu e morreu por seu país. A nação deve sempre se lembrar dele com carinho, assim como o farei". 

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