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Imagem ilustrativa de mulher se protegendo.
Imagem ilustrativa de mulher se protegendo.| Foto: Big Stock

O estupro é uma estratégia militar desde o início da guerra na Ucrânia, conforme destaca a Organização das Nações Unidas (ONU). A violência sexual durante a invasão não é apenas um efeito colateral do conflito, mas uma das principais táticas de desumanização deliberada do exército russo e, segundo relatórios da ONU, atinge vítimas de quatro a 82 anos de idade em território ucraniano.

Embora atualmente exista maior sensibilização sobre o tema, o estupro ainda é o crime "mais silenciado, menos divulgado e por isso o menos condenado", destacou Pramila Patten, representante especial do secretário-geral da ONU, António Guterres, em entrevista ao Le Monde.

"Estupros e todo tipo de agressão sexual foram perpetrados pelas forças russas, muitas vezes sistematicamente, com extrema brutalidade e crueldade. As investigações de casos concretos comprovam que se trata de uma estratégia militar que visa desumanizar as vítimas e aterrorizar a população. O estupro na Ucrânia é de fato uma arma de guerra", revelou Patten.

As primeiras denúncias surgiram ainda no terceiro dia de conflito. O governo da Ucrânia lidera as investigações junto com a ONU, através de diferentes representantes regionais e da primeira-dama do país, Olena Zelenska.

As pesquisas contam com o fato de que não é possível estudar a quantidade total de estupros realizados desde fevereiro, especialmente porque grande parte das vítimas não noticia esse tipo de crime por temer represálias. Ainda assim, os relatórios trazem dados que demonstram que o estupro está presente com força nas movimentações russas na Ucrânia.

Relatos de estupro generalizado 

O primeiro relatório foi entregue em 23 de setembro pela presidência da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia à ONU. A equipe trabalhou nas regiões de Kiev, Chernihiv, Kharkiv e Sumy, onde visitou escombros, centros de tortura e detenção e se reuniu com mais de 150 vítimas e testemunhas. Os pesquisadores confirmaram o uso generalizado do estupro, especificaram que as idades das vítimas variam de crianças a idosos e que os parentes delas foram frequentemente forçados a testemunhar os crimes.

Outro relatório, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (ACNUDH), revelou o uso de estupro contra mulheres e crianças em locais ocupados por forças russas, e também contra homens em locais de detenção. O estudo citou exemplos chocantes.

Na região de Kiev, por exemplo, dois soldados russos entraram na casa de um casal e sua filha de quatro anos, estupraram a esposa, forçaram o marido a assistir à cena antes de espancá-lo, torturá-lo, forçá-lo a fazer sexo com sua esposa na frente deles, enquanto a filha chorava em outro quarto. Depois, a criança teria revelado que ela também sofreu abuso sexual.

"Em Kiev, vi a mãe de um menino de 11 anos que foi estuprado na frente de seus pais. Sem falar nos refugiados ucranianos que conheci em Varsóvia que se viraram para a parede quando viram as palavras 'violência sexual', traumatizados e incapazes de falar", descreveu a porta-voz da ONU.

Konstantin Gudauskas, voluntário da região de Bucha, norte da Ucrânia, relatou um dos crimes sexuais sobre os quais ouviu durante a evacuação de ucranianos. "Ela era uma menina de 14 anos.  Seus olhos estavam vermelhos, cheios de sangue. Ela me disse: 'Salve-me!'”, lembrou Gudauskas em entrevista a González Golshiri, repórter internacional na Ucrânia do Le Monde. O voluntário cobriu a menina com um edredom e a tirou de Bucha.

No caminho, ela contou que havia sido estuprada por dez dias seguidos por soldados russos em um porão, enquanto sua mãe estava amarrada a uma cadeira, sendo forçada a assistir.

"Os soldados disseram a ela: 'Nós estamos estuprando você para que você não possa mais ter filhos'", escreveu o voluntário. Os russos atiraram contra a mãe dela, que morreu em decorrência dos ferimentos dois dias depois. A garota escapou, aproveitando a embriaguez dos russos que haviam esquecido de amarrá-la.

Controle do crime 

No mês passado, em Paris, Patten assinou um acordo de parceria com a ONG Bibliotecas Sem Fronteiras, que tem desenvolvido espaços seguros onde sobreviventes de violência sexual têm acesso a serviços de apoio médico, psicológico e jurídico, além de atividades educativas e formação profissional.

O governo russo garantiu que colaboraria com as investigações. No entanto, segundo Patten, em cada encontro, o representante russo se contentava em negar os abusos, dizendo que eram"notícias falsas".  "Não estou nada satisfeita", desabafou a executiva.

Além dos traumas, as entidades se preocupam com outra consequência dessa violência: a gravidez de mulheres estupradas. Tanto daquelas que estão ainda no país quanto das que precisaram fugir. A ONU tem mobilizado reuniões com representantes dos países próximos, especialmente Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Moldávia e Polônia.

"Você pode imaginar o desânimo de uma mulher ucraniana?  E sua urgência?  Ela poderia ir para casa com um bebê russo?  Nunca! Na Nigéria, conheci meninas raptadas pelo Boko Haram e que voltaram do cativeiro com bebês. O destino delas foi terrível. Elas foram rejeitadas por suas famílias, ridicularizadas, desprezadas, atacadas. [...] Esse crime afeta gerações", apontou Pamila.

Tráfico humano 

Além do estupro, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) revelou em comunicado, ainda em abril, que está "em alerta e alertando os refugiados sobre os riscos representados por predadores e redes criminosas que podem tentar explorar sua vulnerabilidade ou atraí-los com promessas de transporte gratuito, acomodação, emprego ou outras formas de assistência".  Um eco das recentes posições do Conselho da Europa e da Unicef, insistindo também no fato de que mais de 90% desses refugiados que deixaram a Ucrânia são mulheres e crianças.

Quando a guerra estourou em 24 de fevereiro, o caos nas fronteiras beneficiou os contrabandistas. Os primeiros casos de hospedagem oferecidos em troca de relações sexuais rapidamente foram denunciados por associações presentes no local.

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