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Bandeira da Nicarágua estendida durante missa realizada pela Igreja Católica em defesa da paz no país, em 1º de janeiro de 2019 | INTI OCON / AFP
Bandeira da Nicarágua estendida durante missa realizada pela Igreja Católica em defesa da paz no país, em 1º de janeiro de 2019| Foto: INTI OCON / AFP

Repórteres de um site de notícias estão escrevendo suas matérias em locais secretos. Editores da única rede de notícias 24 horas do país foram presos. E funcionários de uma importante organização de direitos humanos escaparam para as montanhas.

Com exceção de uma. 

“Tenho 80 anos e não tenho condições de subir as montanhas, nem mesmo para salvar minha vida”, disse Vilma Núñez, conhecida advogada que fundou o Centro de Direitos Humanos da Nicarágua. 

Nas últimas semanas, as forças do presidente Daniel Ortega lançaram uma onda de repressão contra grupos da sociedade civil e veículos jornalísticos que está sufocando o pouco que resta da democracia neste país da América Central. 

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O governo recentemente tornou ilegais nove grupos da sociedade civil e apreendeu seus bens. As organizações de notícias críticas ao governo de Ortega foram fechadas e alguns editores foram acusados de crimes, incluindo conspiração para cometer atos terroristas. 

“O governo está tentando fechar todas as dissidências políticas e impor um reinado de medo e terror, visando seus opositores”, disse Paulo Abrão, diretor da comissão de direitos humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). 

A repressão marca uma nova etapa nos esforços do governo para destruir um movimento de protesto que surgiu em abril e se transformou em manifestações gigantes exigindo a renúncia de Ortega. Forças policiais e paramilitares responderam abrindo fogo contra os manifestantes. Segundo a comissão da OEA, 324 pessoas foram mortas no levante. O governo calcula o número de mortos em 198, incluindo 21 policiais. 

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Em dezembro, um painel de investigadores independentes nomeado pela OEA concluiu que as ações das forças de segurança da Nicarágua poderiam ser consideradas crimes contra a humanidade. Eles demandaram uma investigação de Ortega, observando que a campanha coordenada e sustentada pela polícia nacional “só poderia ser explicada por uma decisão tomada pelas autoridades máximas” do país. Eles também pediram uma investigação do comando da polícia e do judiciário. 

Autoridades expulsaram os investigadores do país pouco antes da emissão do relatório. O governo respondeu às conclusões acusando os investigadores de ignorar a violência letal dos manifestantes. Também alegou que eles estavam “ecoando as políticas do governo dos Estados Unidos da América contra a Nicarágua”. 

Durante meses, o governo perseguiu os envolvidos diretamente nas manifestações, prendendo mais de 400 pessoas e levando milhares a fugir do país. Agora, está intensificando sua campanha contra organizações de notícias e grupos sem fins lucrativos que considera simpáticos aos protestos. 

Jaime Chamorro, editor do jornal mais influente do país, La Prensa, disse em uma entrevista que os ataques à mídia foram piores do que a censura que ocorreu na década de 1980, quando o governo esquerdista sandinista lutava contra os rebeldes apoiados pelos EUA. 

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Naquela época, ele comentou, uma guerra estava em andamento. “Mas como você justifica o fechamento da mídia hoje, quando estamos vivendo em paz?”, perguntou Chamorro. 

Permanência no poder

Ortega, agora com 73 anos, foi uma das principais figuras do movimento rebelde sandinista que derrubou o ditador Anastasio Somoza Debayle em 1979. O ex-combatente marxista continuou liderando o governo até 1990, quando perdeu a eleição presidencial. 

Nos anos seguintes, doadores internacionais buscavam fortalecer a democracia na Nicarágua, e mais de 4.000 grupos cívicos foram estabelecidos, de acordo com Felix Madariaga, diretor do Instituto para Estudos Estratégicos em Políticas Públicas, em Manágua. 

Ortega foi reeleito em 2006 e começou a consolidar o poder. Hoje, junto com sua esposa, a vice-presidente Rosario Murillo, ele controla muitas instituições do Estado – incluindo os tribunais, a assembleia nacional, a polícia e o conselho eleitoral. 

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Na ausência de partidos de oposição fortes, os grupos cívicos e a mídia se tornaram efetivamente uma grande força política, disse Madariaga. É por isso que é tão significativo que o governo de Ortega esteja reprimindo esses grupos, disse ele em um recente painel organizado pelo grupo de pesquisa Inter-American Dialogue em Washington. 

Quando os protestos irromperam em abril, “a sociedade civil havia despertado. A imprensa estava realmente desempenhando um papel fundamental para estimular a população em sua busca pela liberdade”, disse Madariaga. 

O porta-voz do governo para imprensa estrangeira e outras autoridades da Nicarágua não responderam a pedidos de comentários. Mas o governo disse que os protestos equivaliam a um “golpe suave” apoiado por seus oponentes, incluindo membros da sociedade civil e da mídia. Entre aqueles que o governo tenta prender está Madariaga, sob a acusação de ter financiado e treinado manifestantes. Ele nega as alegações. 

Escalada da repressão

As ações governamentais mais recentes visam algumas das instituições cívicas e midiáticas mais proeminentes do país, muitas das quais têm laços históricos com o movimento sandinista. Por exemplo, o Confidencial, um site independente de notícias, é dirigido por Carlos Fernando Chamorro, herdeiro de uma das famílias políticas mais famosas da Nicarágua e ex-editor do jornal sandinista Barricada. O site foi fechado em 14 de dezembro. Uma semana depois, a emissora de TV a cabo 100 Percent Noticias foi forçada a sair do ar e dois de seus editores foram presos. 

O jornal La Prensa continua a funcionar, mas seu editor, Chamorro – tio do diretor do Confidencial – disse que a empresa está sendo estrangulada financeiramente pelo governo. 

“Além de tudo, eles bloquearam nossas importações de papel e tinta. Temos apenas o suficiente para operar por dois meses”, disse ele. 

Oito meses depois que começaram, os protestos contra o governo foram, em grande parte, extintos. Mas não está claro se as medidas cada vez mais repressivas do governo manterão Ortega no poder até a próxima eleição, em 2021. 

A economia, que vinha crescendo constantemente nos últimos anos, encolheu cerca de 4% em 2018, quando a turbulência política atingiu o turismo e outros negócios. 

E a pressão internacional está crescendo. Em 20 de dezembro, o presidente Donald Trump sancionou uma medida destinada a bloquear novos empréstimos à Nicarágua por parte de instituições financeiras internacionais. Sua administração já havia anunciado sanções contra altas autoridades da Nicarágua, incluindo Rosario Murillo, a vice-presidente. 

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Enquanto isso, a OEA está considerando penalizar a Nicarágua por violar normas democráticas, um processo que poderia levar a sanções ou à suspensão do país da organização. 

Hoje, quase ninguém prevê a ascensão de um movimento rebelde apoiado por estrangeiros, do tipo que lutou contra os governos da região nos anos 80. Mas na Nicarágua, “existe uma tradição, em todos os lados, de armamento improvisado”, disse Geoff Thale, especialista em América Central do Escritório de Washington sobre a América Latina, um grupo de pesquisa. “Não se chega a uma guerra civil com isso, mas isso pode gerar resistência violenta. Isso é uma preocupação, especialmente no interior do país”. 

Por enquanto, os jornalistas perseguidos estão tentando encontrar uma maneira de continuar divulgando as notícias. As redações do Confidencial foram ocupadas pela polícia, mas os repórteres continuam atualizando o site, trabalhando em locais não revelados. 

“Nós improvisamos uma redação alternativa”, disse o repórter Wilfredo Miranda. “Estamos trabalhando remotamente”.

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