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Cristina Kirchner deixa a presidência da Argentina nesta quinta-feira, após 12 anos de governo kirchneristas (primeiro com seu falecido marido, Néstor, e posteriormente com ela | David Fernández/EFE
Cristina Kirchner deixa a presidência da Argentina nesta quinta-feira, após 12 anos de governo kirchneristas (primeiro com seu falecido marido, Néstor, e posteriormente com ela| Foto: David Fernández/EFE

Há pouco mais de uma década, Nora Rodríguez esperava que caísse a noite para buscar comida no maior lixão de Buenos Aires. A travessia tinha riscos: podia ser presa pela polícia ou morrer esmagada pelos resíduos lançados pelos caminhões de coleta.

Nora já não come do lixo e sobrevive graças a uma cooperativa de reciclagem formada no âmbito dos programas sociais impulsionados nos últimos 12 anos de governo, para resgatar milhões de marginalizados deixados pela enorme crise financeira de 2001.

“Estamos orgulhosos de dizer que vivemos do lixo. Por trabalhar aqui levamos dignamente o dinheiro para casa”, conta esta mulher de 47 anos, encarregada da cooperativa “Bella Flor”, enquanto atrás dela uma dezena de jovens separa plásticos e vidros entre os restos lançados sobre uma esteira que circula diante deles, em uma despensa de um prédio onde levam os resíduos da capital.

Transição será marcada por brigas

Após um “festival” de designações para cargos públicos no último diário oficial da era Cristina Kirchner, a presidente argentina ordenou a seus partidários que esvaziem a posse de Mauricio Macri como presidente, na quinta-feira (10).

Ela já havia se negado a participar da transição, e não entregará bastão e faixa ao rival. A briga entre os dois mandatários chegou ao ponto de terminar na Justiça, com uma juíza federal obrigando a presidente a deixar o cargo às 23h59m desta quarta-feira.

Cristina se despede de seus apoiadores como presidente durante um evento público na Praça de Maio. Deputados e senadores do governo foram instruídos a não frequentarem a posse de Macri, de acordo com o “Clarín”. São 150 congressistas leais ao kirchnerismo que se reúnem nesta quarta-feira

“Não há sentido em assistir. Não vai mudar a vida de ninguém estarmos no Congresso”, disse publicamente o deputado Carlos Kunkel. Segundo deputados sob anonimato, “não vale a pena ir” porque a posse é uma “aberração jurídica e um golpe de Estado”.

Na últimas das brigas entre Cristina e Macri — que já envolveram local da posse, além de faixa e bastão presidenciais — a chefe de Estado anunciou que seu mandato só acabaria às 23h59 do dia 10 (quinta), mas foi contrariada pelo promotor Jorge di Lello e, agora, a juíza María Servini deu prosseguimento à decisão original de encerrar o mandato no final do dia 9.

No último dia do governo, o Boletim Oficial mostrou a designação de 50 altos cargos em serviços públicos, nas áreas de saúde, segurança, desenvolvimento social e chancelaria. Embaixadores em Costa Rica e Honduras também foram anunciados. A iniciativa, segundo o “La Nación”, seria inchar a máquina estatal para prejudicar o Orçamento e incluir figuras ligadas ao kirchnerismo no funcionalismo público.

De olhar desafiante, Nora lamenta que “ainda muita gente vai à montanha [de lixo]. Me indigna quando dizem que na Argentina não existe mais pobreza. Você deixa de ser pobre porque te dão uma cesta básica ou um subsídio? Para mim, não”.

Troca de poder

O kirchnerismo, corrente de centro-esquerda do peronismo fundada pelo falecido ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e por sua viúva e sucessora Cristina Kirchner (2007-2015), desce do poder nesta quinta-feira (10), após 12 anos, com a posse do novo presidente Mauricio Macri -- de tendências liberais e posicionamento à direita.

Durante 12 anos, essa corrente impulsionou medidas progressistas e revitalizou o papel da política na sociedade. Mas como sucedeu como outros movimentos populistas da região, as políticas de inclusão não conseguiram erradicar a pobreza estrutural.

Também dividiu os argentinos, conviveu com graves acusações de corrupção --, como o emblemático caso do vice-presidente Amado Boudou, processado por supostamente adquirir através de testas de ferro a única impressora de cédulas de dinheiro do país -- e com denúncias por pretender fixar limites aos meios de comunicação críticos.

“O kirchnerismo deu uma boa resposta à crise e suas primeiras apostas apontaram para desafiar o que havia ocorrido, reativar o mercado interno e remendar um país que havia se fissurado”, avaliou o sociólogo Roberto Gargarella, professor da Universidade Torcuato Di Tella e da Universidade de Buenos Aires “Para os críticos, foram eles mesmos [os Kirchners] quem fixaram os termos de uma adesão cívica e depois criaram as dificuldades que lhes tiraram apoio.”

Essa ausência de apoio ficou patente já no primeiro turno das eleições presidenciais, em 25 de outubro, no qual 60% dos argentinos se inclinaram para outras opções políticas distintas ao kirchnerismo.

As eleições vencidas por Macri representaram o fim do ciclo político mais extenso da história argentina, porque nos próximos quatro anos o sobrenome Kirchner não ocupará a presidência do país, retirado pelo kirchnerismo de uma profunda crise econômica, ao iniciar um processo de redistribuição da riqueza que favoreceu as classes populares e lhe valeu o ódio dos setores mais abastados.

Não foi magia

Néstor Kirchner assumiu em maio de 2003, com 50% da população na pobreza. O país dera um calote na dívida, que chegava a US$ 100 bilhões e a relação entre a política e os cidadãos estava rota.

“Não foi magia”, costuma repetir Cristina, como bordão para se contrapor aos críticos que somente atribuem ao preço recorde da soja o resgate do país após a crise, não a uma política econômica concentrada na expansão do mercado interno que levou os setores mais pobres ao consumo.

“Por mais que tratem de distorcer a história, como se apaga da mente das crianças e jovens que seus pais recuperaram o trabalho, sua família obteve um crédito hipotecário para a casa, que seu primeiro computador tenha sido recebido do Estado? Poderão ter 10 mil títulos [na imprensa], editar 25 mil frases, mas nunca poderão apagar a vivência que cada argentino teve nesta década”, afirmou Cristina.

Os Kirchners se propuseram a reduzir o endividamento do país para torná-lo independente da influência dos organismos internacionais de crédito, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e do capital especulativo, de maneira que o governo tivesse liberdade de agir na economia sem condicionamentos.

Primeiro foi cancelada a dívida com o FMI e se reestruturou 93% da dívida não paga desde 2001.

Após brigas, Cristina se recusa a participar de posse de Macri

Depois de tensas negociações e acusações de suposto “maltrato” por parte de seu sucessor, o presidente eleito Mauricio Macri, a chefe de Estado argentina, Cristina Kirchner, decidiu não participar da cerimônia de transferência do comando presidencial quinta-feira (10).

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A fatia dos credores que não aceitaram a reestruturação se converteu em uma dor de cabeça para o governo de Cristina. Em 2013, um tribunal de Nova York ordenou ao governo que pagasse a eles US$ 1,5 bilhão e desatou um longo conflito, ainda não resolvido, que agravou a deterioração da economia argentina nos últimos anos.

Durante o mandato de Néstor e o começo da gestão de Cristina, a economia argentina cresceu a uma taxa média de 8%, com inédito superávit comercial e fiscal. O ingresso de divisas na exportação de grãos elevou as reservas do Banco Central a US$ 50 bilhões e a arrecadação fiscal atingiu as máximas históricas.

Várias indústrias que praticamente haviam desaparecido durante a década neoliberal dos anos 1990, como a têxtil e a de calçados, foram reativadas graças a subsídios e barreiras impostas sobre as importações.

Também foram restabelecidas as negociações salariais entre empresários e sindicatos, com mediação do Estado, para fixar os aumentos de salário em cada setor da economia. O salário mínimo aumentou 2.258% desde 2003 e está fixado atualmente em 6 mil pesos (US$ 622), um dos mais altos na América Latina. A pensão mínima para os aposentados, por sua vez, aumentou 2.760% em 12 anos.

Ajuda social

O kirchnerismo destinou quantidade inédita de recursos à ajuda social, em grande parte financiadas com dinheiro da Administração Nacional da Seguridade Social, que absorveu fundos das aposentadorias e pensões privadas nacionalizadas em 2008. Um ano depois, estabeleceu a Asignación Universal por Hijo, que beneficia com em média 1.400 pesos (US$ 144) ao mês 2 milhões de famílias sem emprego ou com trabalho informal.

Quais são os desafios da Argentina e o que o Brasil ganha e perde com a eleição de Macri

Se por um lado a eleição de Mauricio Macri representa um alento aos exportadores brasileiros, que verão o fim de medidas protecionistas argentinas abraçadas pelos governos Kirchner; por outro, o Brasil corre o risco de se ver relegado à posição de “patinho feio” para investidores interessados na América Latina.

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“Este governo foi maravilhoso, gostaria que continuasse. O que ela fez pelos pobres foi extraordinário, meus filhos tiveram computador graças a Cristina. A metade de minha casa está feita graças a Cristina. Meu papai se aposentou graças a Cristina”, enumerou María Amarilla, de 42 anos e mãe de sete filhos.

Amarilla colabora em um centro comunitário de um bairro pobre a noroeste de Buenos Aires e que há 12 anos oferecia a única refeição do dia para centenas de famílias desocupadas.

“Quem tem mais não quer ver, não quer entender porque tira um pouco dele para dar a nós, os pobres”, disse a mulher, em referência ao desgosto que provoca em muitos setores da classe média a pesada carga de impostos sobre os salários dos trabalhadores registrados. Parte dessa arrecadação também se destina ao financiamento da assistência social.

O impacto da ajuda social e das melhoras salariais é difícil de quantificar exatamente, já que o governo interveio no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos e alterou o sistema de medição a partir de 2007, quando a inflação já aparecia como um problema. Dois anos depois, também deixou de calcular a indigência e a pobreza.

“Parece se confirmar mais uma vez que o aumento do consumo interno e da assistência pública, ainda que um alívio para as necessidades mais urgentes, não consegue resolver estruturalmente a armadilha em matéria de desigualdade que impõe um modelo político-econômico fundado em heterogeneidades sociais muito marcadas”, disse um recente relatório do Observatório da Dívida Social do país, da Universidade Católica Argentina.

O estudo revelou que mais de 10 milhões de pessoas vivem em lares onde se ganha menos de US$ 400 ao mês e que 30% dos lares dos principais centros urbanos do país apresenta déficits em algum dos indicadores de pobreza estrutural, como a falta de água corrente ou de sistema de esgoto.

Briga com o Clarín

A maior parte da gestão kirchnerista esteve marcada por um conflito com o poderoso conglomerado de mídia Clarín, que o governo escolheu como rival sob o lema “democracia ou corporações”.

No âmbito dessa disputa, o governo impulsionou no Parlamento uma controversa lei de meios, destinada a limitar a posição dominante do Clarín no mercado de meios audiovisuais, mas sua aplicação segue ainda pendente pelos recursos apresentados pela companhia ante a Justiça, por entender que a norma busca cercear o jornalismo independente.

O governo também adquiriu os direitos de televisão das partidas de futebol, que estavam sob controle do Grupo Clarín. O esporte mais popular do país chegou a todos gratuitamente, mas a um custo para o Estado de 1,4 bilhão de pesos (US$ 144 milhões) pagos anualmente à Associação de Futebol Argentino (AFA).

A partir dessa briga surgiu a “fenda” [grieta], termo cunhado por Jorge Lanata, famoso jornalista e condutor de um programa político de televisão transmitido por um canal do Clarín, em referência à divisão política e cultural provocada pelo kirchnerismo na sociedade, somente equiparada ao peronismo nos anos 1950.

Cristina queria lançar foguete antes de deixar o poder

Membros do governo argentino informaram nesta terça-feira (8) ao jornal argentino “Clarín” que a presidente Cristina Kirchner previa lançar um foguete experimental hoje, a dois dias de deixar a Casa Rosada.

Segundo a publicação, que faz oposição à mandatária, o Ministério do Planejamento se preparava para o lançamento do foguete do programa Tronador 2, mas que teve que adiá-lo devido a problemas técnicos.

A intenção era que fosse enviado ao espaço um foguete de transporte capaz de colocar satélites em órbita saindo de Punta Indio, a 141 km de Buenos Aires. O local foi o mesmo onde foram feitos os últimos lançamentos.

Funcionários do governo argentino afirmam que o artefato a ser lançado foi transportado na última terça (1º) da base de Punta Indio para o distrito de La Capetina, onde fica o centro de lançamento.

Eles dizem que a necessidade de enviar o foguete ao espaço antes de sair do poder fez com que a Comissão Nacional de Atividades Espaciais (Conae) dispensasse testes na plataforma.

Na sexta, o governo reconheceu que não havia mais tempo. Foi o terceiro adiamento do lançamento do foguete -a primeira data era março, depois em agosto e, por fim, antes do primeiro turno das eleições, em 25 de outubro.

O governo argentino não comentou sobre o caso. Nos últimos anos, o governo de Cristina Kirchner lançou dois satélites ao espaço, com ajuda do programa espacial europeu, que foram enviados ao espaço pela Guiana Francesa.

“Tudo se tornou tenso em demasia, mas é uma sociedade tensa por lutas de poder”, disse a jornalista Sandra Russo, autora do livro “A presidenta”, no qual revelou detalhes sobre a intimidade de Cristina durante seu mandato.

A partir dos meios do Grupo Clarín, “disseram [a Cristina] que Néstor não estava no caixão, que o filho é um ladrão, que escondia dólares no mausoléu no qual está o cadáver de seu marido. Quiseram destitui-la. Como você reage a não ser crispando-se e defendendo-se?”, disse a jornalista, colunista do jornal Página 12 e do programa de televisão 678, ambos de linha editorial governista.

Igualdade

O kirchnerismo também transformou a vida de muitos argentinos, ao promover no Congresso a sanção de leis inéditas a favor das minorias sexuais, como o matrimônio igualitário e a lei de identidade de gênero, que permite a uma pessoa inscrever-se no documento de identidade com o sexo com o qual se define.

Em matéria de direitos humanos, foram anuladas em 2003 as leis da anistia que haviam protegido da Justiça militar envolvidos em crimes contra a humanidade durante a última ditadura militar (1976-1983). A decisão política permitiu que 575 repressores fossem condenados, segundo estatísticas que cobrem o período até agosto.

Os Kirchners, pertencentes à mesma geração dos desaparecidos, apoiaram as Avós da Praça de Maio com recursos para a busca de centenas de crianças nascidas de mães detidas em centros clandestinos de detenção durante o regime. Desde 2003, foram encontrados 43 dos 118 netos recuperados até agora.

Pela primeira vez na história, foi destinado 6% do PIB para a educação e houve um respaldo inédito para o desenvolvimento científico e tecnológico. Mais de mil cientistas foram repatriados do exterior, enquanto a Argentina se converteu num dos primeiros países da América Latina com capacidade para fabricar satélites.

Nesse período, o Estado recuperou o controle da petrolífera YPF e da companhia Aerolíneas Argentinas, medidas de impacto negativo para investidores estrangeiros, mas bem recebidas pela população.

Popularidade em baixa

A popularidade do kirchnerismo começou a declinar a partir de 2012, coincidindo com o retrocesso nos indicadores econômicos, combinados com a inflação e as restrições impostas à compra de dólares. Também foi questionado pela falta de respostas certeiras ao flagelo da falta de segurança e do narcotráfico.

No início do último ano do governo, por outro lado, apareceu morto o promotor Alberto Nisman, poucos dias após apresentar uma grave denúncia contra a presidente, no âmbito de uma causa que ele investigava contra um centro judaico de Buenos Aires, em 1994. Até o momento, a Justiça não determinou as causas da morte do promotor.

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