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disputa interna pelo poder na rússia
Uma guarda de honra em frente a “The Motherland Calls”, a estátua do memorial de guerra em Volgograd, Rússia| Foto: Stanislava Novgorodtseva/NYT

Um oficial da lei veterano, chefe da filial regional da versão russa do FBI, conquistou uma reputação tão temida na cidade anteriormente conhecida como Stalingrado que, quando entrou em um restaurante local no ano passado, os outros clientes se levantaram e saíram.

"Após alguns minutos, o lugar estava vazio. Todos na cidade tinham medo dele", disse Vyacheslav Cherepakhin, empresário local e jornalista.

Porém, em junho, o oficial, Mikhail K. Muzraev, foi forçado a sair do carro perto de sua casa, na cidade agora chamada Volgogrado, por uma equipe de homens fortemente armados, enviados de Moscou pelo Serviço de Segurança Federal, ou FSB, a principal agência sucessora da KGB soviética. Ele foi levado para Moscou e preso no mesmo dia.

A detenção de Muzraev ameaçou um equilíbrio tênue imposto pelo presidente Vladimir Putin entre os siloviki – uma vasta rede de segurança, inteligência e oficiais militares cujo poder, recursos e rivalidades crescem, num momento em que a Rússia começa a se perguntar o que acontecerá quando o mandato presidencial acabar em 2024.

Desde que Putin chegou ao poder há quase 20 anos, agências rivais como a FSB e a organização de Muzraev, o Comitê de Investigação, cooperam na perseguição dos críticos do Kremlin. Elas agora estão cada vez mais em desacordo, de maneira discreta, em relação à influência na luta possivelmente acirrada pela sucessão. Com a prisão de Muzraev, no entanto, o problema foi escancarado.

Tendo passado mais de dez anos como procurador e, em seguida, como chefe do Comitê de Investigação de Volgogrado, Muzraev prendeu dois prefeitos e os chefes da polícia regional, da polícia de trânsito, do esquadrão antidrogas e dos serviços de emergência, bem como uma série de proeminentes empresários na cidade à beira do Rio Volga.

Em entrevistas, vários deles culparam Muzraev por destruir suas vidas com o que disseram ser acusações falsas, e comemoraram sua queda inesperada. Mas mesmo eles não acreditam na história apresentada pelo FSB, de que seu inimigo estava envolvido em uma tentativa de assassinato contra o governador regional, Andrei Bocharov, ex-comandante dos paraquedistas militares nomeado por Putin para governar Volgogrado em 2014.

O suposto ataque ao governador – uma tentativa risível de incêndio em uma propriedade de luxo fortemente vigiada em Volgogrado – foi cometido há três anos, sem vítimas e com poucos danos, um caso que já havia sido supostamente resolvido com a prisão dos supostos culpados.

Disputa interna

"Ninguém acredita nesse conto de fadas", disse Roman Zaitsev, ex-investigador de polícia de Volgogrado que deixou a força para se tornar advogado. Em 2017, Zaitsev foi acusado por Muzraev de "incitar falso testemunho" depois que se recusou a forçar um de seus clientes a confessar um assassinato que este negava ter cometido.

Zaitsev disse que sentiu "uma breve euforia" e tomou champanhe para comemorar depois de saber que Muzraev tinha sido detido pelo FSB. Mas sua felicidade rapidamente desapareceu quando percebeu que "essa não é uma vitória da justiça", mas o resultado de "uma disputa entre diferentes clãs do mesmo sistema".

"Não é uma luta entre o bem e o mal. É o mal contra o mal", afirmou Zaitsev.

O cientista político Nikolai Petrov disse que a queda abrupta de uma figura tão poderosa nas mãos do FSB foi um sinal claro de desequilíbrio na tática "dividir e conquistar", adotada por diferentes clãs russos – cuja lealdade ao Kremlin e desconfiança uns dos outros sempre foram o alicerce do governo de Putin.

"Sem um sinal claro do que Putin fará em 2024 ou de quem vai substituí-lo, todo o sistema está desmoronando. Putin controla tudo, mas vemos mais e mais movimento desse ou daquele clã de elite", disse Petrov.

A elite russa há muito tempo é convulsionada por lutas internas, mas em geral isso ocorre longe do conhecimento do público, de modo invisível ou pelo menos indecifrável para todos, com exceção de um pequeno círculo de pessoas do Kremlin.

A última vez que diferentes clãs da lei entraram em confronto tão abertamente em público foi em 2007, no que ficou conhecido como a "a guerra dos siloviki", por volta da época que se esperava ser o fim da presidência de Putin em 2008.

No fim, Putin permaneceu, assumindo a posição de primeiro-ministro e deixando a presidência a um velho amigo, Dmitry Medvedev, por quatro anos, antes de retornar para um terceiro mandato presidencial em 2012.

Putin poderia tentar outro artifício para permanecer no governo depois de 2024, mas a ansiedade sobre suas intenções fez com que centros de poder rivais lutassem para afirmar sua influência antes de uma possível transferência de poder, dizem analistas políticos.

O Voldemort da Rússia

No momento de sua prisão em Volgogrado, Muzraev, que no ano passado deixou seu cargo como chefe regional do Comitê de Investigação, estava trabalhando como assessor especial de Alexander Bastrykin, chefe nacional do órgão em Moscou.

Essa assessoria não parece ter envolvido muito trabalho – Muzraev permaneceu em Volgogrado –, mas forneceu o que, até sua prisão, parecia ser uma garantia de proteção vinda de altos escalões.

Para garantir que a agência de Bastrykin, que normalmente lida com casos criminais envolvendo incêndios, não pudesse atuar na decisão do destino de Muzraev, o departamento de investigação do FSB em Moscou classificou seu caso como "terrorismo", crime sobre o qual a polícia secreta tem controle exclusivo.

Vladimir A. Sementsev, um dos advogados de Muzraev, disse que o caso talvez seja, em parte, uma rotina de intimidação da polícia secreta, que tem a fama de prender as pessoas para obter dinheiro ou favores, ou simplesmente para mostrar quem é que manda.

"Não estou dizendo que meu cliente nunca fez nada de errado. Não conheço toda a sua história. Mas estou absolutamente certo de que ele não é um terrorista que tentou matar o governador", disse Sementsev.

Durante uma breve aparição no tribunal em Moscou, Muzraev, da etnia kylmyk, uma minoria russa de ascendência mongol, classificou o caso de terrorismo contra ele como uma "fantasia".

Boris T. Izgarshev, proeminente empresário local que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em 2001, disse que foi perseguido por Muzraev inúmeras vezes, por fraude e outras acusações. "O princípio era simples: se você quer que o caso seja encerrado, tem de pagar. Todo mundo tinha medo dele e ainda tem. Ele se foi, mas seu sistema permanece".

Muzraev era tão temido que ficou conhecido como o "governador da noite", uma referência a seus possíveis laços com o submundo do crime e a seus poderes sombrios, que fogem ao controle da autoridade nominal da região, o governador, três dos quais vieram e se foram durante seu mandato.

Zaitsev, o ex-investigador que virou advogado, comparou-o a Voldemort – "aquele que não deve ser nomeado" –, dos livros de Harry Potter. "Ele era o Lorde das Trevas de Volgogrado", disse Zaitsev.

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