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Navios negreiros do século XIX aportavam no enorme cais de pedra do Valongo, desenterrado por arqueólogo nas proximidades do porto do Rio de Janeiro | Lianne Milton / The New York Times
Navios negreiros do século XIX aportavam no enorme cais de pedra do Valongo, desenterrado por arqueólogo nas proximidades do porto do Rio de Janeiro| Foto: Lianne Milton / The New York Times

Partindo da costa angolana do outro lado do Atlântico, os navios negreiros aportavam aqui no gigantesco cais de pedra, entregando a carga humana aos "armazéns de engorda" da Rua do Valongo.

Os escravos recém-chegados que morriam antes de começarem a trabalhar arduamente nas minas brasileiras eram transportados para uma cova coletiva dos arredores, onde os corpos apodreciam em meio a pilhas de lixo. Coveiros do Cemitério dos Pretos Novos esmagavam os ossos dos mortos, abrindo espaço para milhares de novos cadáveres.

Agora, com equipes de construção virando o Rio de Janeiro do avesso no surto de construção que antecede a Copa do Mundo deste ano e as Olimpíadas de 2016, arqueólogos oferecem vislumbres da cidade como centro nervoso do tráfico negreiro no século XIX.

Além das pedras grandes do cais em si, arqueólogos encontram artigos que ajudaram a reconstruir a vida diária dos escravos, incluindo peças de cobre, tidas como amuletos, e dominós, usados para apostas.

Porém, enquanto as construtoras pressionam ao redor do porto escravagista desenterrado – com projetos futuristas como o Museu do Amanhã, custando cerca de US$ 100 milhões –, a reestruturação está motivando um debate questionando se o Rio está negligenciando o passado na pressa de construir o futuro.

"Nós estamos encontrando sítios arqueológicos de importância global e provavelmente muito mais extensos do que foi escavado até agora, porém, em vez de priorizar essas descobertas, nossos líderes prosseguem com sua reconstrução grotesca do Rio", afirmou Sonia Rabello, jurista eminente e ex-vereadora.

Descendentes de escravos africanos que moram como invasores em prédios caindo aos pedaços ao redor do antigo porto escravagista estão se organizando para obter escrituras de suas casas, que parece pertencer a uma ordem franciscana da Igreja Católica.

"Conhecemos os nossos direitos", disse Luiz Torres, 50 anos, professor de História e líder do movimento em prol das propriedades. "Tudo que aconteceu no Rio foi modelado pelas mãos dos negros."

O Brasil recebeu perto de 4,9 milhões de escravos, pelo comércio no Atlântico, enquanto a América do Norte importou aproximadamente 389 mil, segundo o Banco de Dados do Tráfico Negreiro Transatlântico, da Universidade Emory, Atlanta. Acredita-se que o Rio tenha importado mais escravos do que qualquer outra cidade das Américas, derrotando lugares como Charleston, Carolina do Sul, e Kingston, Jamaica. Ao todo, o Rio recebeu mais de 1,8 milhão de escravos negros, 21,5 por cento de todos os escravos trazidos para as Américas.

"Os horrores cometidos aqui são uma mancha na nossa história", disse Tânia Andrade Lima, arqueóloga-chefe da escavação no Valongo.

O cais sórdido funcionou até a década de 1840 quando as autoridades o enterraram sobre docas mais elegantes projetadas para receber a nova imperadora do Brasil, vinda da Europa. Ambos os cais terminaram sendo enterrados por um aterro sanitário e um distrito portuário residencial, chamado Pequena África.

O Brasil aboliu a escravidão em 1888, tornando-se o último país das Américas a fazê-lo.

Muitos descendentes dos escravos se instalaram onde o mercado negreiro funcionava antes, com idiomas africanos sendo falados na área até o século XX. Embora o bairro esteja ganhando reconhecimento como berço do samba, uma das tradições musicais mais reverenciadas do país, ele foi negligenciado durante muito tempo pelas autoridades.

Para complicar ainda mais o debate sobre como o passado do Rio deveria ser equilibrado em conjunto com a reconstrução frenética da cidade, algumas famílias ainda moram sobre sítios arqueológicos, às vezes, escavando o patrimônio brasileiro por conta própria.

"Quando eu vi os ossos, pensei que fossem o resultado medonho de um assassinato envolvendo antigos moradores", afirmou Ana de la Merced Guimarães, 56 anos, que mora em uma casa antiga situada acima de um ponto de desova de escravos mortos, usado até meados da década de 1830. Aproximadamente 20 mil pessoas foram enterradas ali. Operários que reformavam a casa em 1996 toparam com os restos mortais da cova coletiva.

As autoridades têm planos de construir um projeto de veículo leve sobre trilhos em sua rua, o que pode levar a muitas descobertas. "Este foi um local de crimes indescritíveis contra a humanidade, mas também é onde moramos", disse Guimarães, reclamando que os órgãos públicos deram pouco apoio à sua organização.

Washington Fajardo, consultor do prefeito do Rio, disse que foram tomadas medidas nos sítios arqueológicos, incluindo a nomeação do porto dos escravos como área de proteção ambiental. Um plano criaria um laboratório onde os visitantes poderiam ver os arqueólogos estudando material dos sítios.

Entretanto, Cláudio Lima Castro, urbanista, foi crítico. "Os arqueólogos estão expondo as bases da nossa sociedade desigual enquanto testemunhamos uma tentativa perversa de transformar a cidade em algo que lembra Miami ou Dubai", ele assegurou. "Nós estamos perdendo uma oportunidade de nos concentrarmos em detalhes de nosso passado, e quem sabe até aprender com ele."

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