Sírios fogem da guerra passando pela Itália, na esperança de chegar a países mais prósperos; acima, resgate feito por italianos| Foto: Bryan Denton para The New York Times
Famílias embarcam em ônibus na estação ferroviária central de Milão, rumo a abrigos temporários oferecidos pela prefeitura

O barco de refugiados apareceu primeiro como ponto cinza no horizonte mediterrâneo, 80 quilômetros ao largo da costa sudeste da Sicília. Quando um navio de resgate da Guarda Costeira italiana chegou mais perto, o barco pequeno finalmente se fez visível por inteiro. De pé sobre a proa, a figura difusa de um homem agitava um cobertor branco. À deriva no mar, a embarcação estava lotada com 150 sírios fugitivos da guerra.

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Mães com as cabeças cobertas com lenços carregavam seus filhos pequenos no colo. Uma criança usava colete salva-vidas de Bob Esponja. Contrabandistas os tinham deixado sozinhos com um telefone via satélite e um número de emergência na Itália. "Socorro!", imploraram, antes de o telefone emudecer. "Estamos perdidos."

Enquanto posicionava seu navio da Guarda Costeira ao lado da embarcação pesqueira, o capitão Roberto Mangione, aos gritos, pedia calma a todos. Os sírios, pálidos e assustados, começaram a bater palmas. Um homem penteou o cabelo, como que se preparando para saudar sua vida nova. Confusa e exausta, uma mulher chamada Abeer achou que a salvação tinha chegado, finalmente.

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"Não me restou nada na Síria", explicou. Abeer fugiu com seu marido e três filhos adolescentes. "Viemos para a Europa com nada além de nós mesmos."

O êxodo sírio tornou-se uma das mais graves crises de refugiados do mundo nas últimas décadas. Mais de 2 milhões de pessoas já fugiram da guerra civil síria, a maioria se fixando nos vizinhos Líbano, Jordânia e Turquia. Desde o julho, porém, refugiados também começaram a chegar em grande número à Europa, gerando uma crise humanitária no Mediterrâneo. Ao longo de cinco meses, a Guarda Costeira italiana resgatou milhares de sírios. Centenas de outros migrantes, incluindo muitos sírios, morreram em dois grandes naufrágios em outubro.

Para muitos deles, a chegada à Europa foi apenas o início de outra jornada difícil. Tendo arriscado suas vidas na esperança de se fixarem no próspero norte da Europa, muitos sírios se viram sem poder sair do sul do continente, escondidos da polícia, tentando passar por guardas de fronteira sem serem vistos e viajar para o norte para pedir asilo político ali.

Um sírio ateou fogo ao próprio corpo em Roma, em outubro, em sinal de protesto. Em Milão, a capital financeira situada perto da fronteira norte da Itália, sírios começaram a chegar em agosto e continuaram até novembro. Os refugiados se abrigavam na estação ferroviária, impondo um dilema às autoridades: ajudá-los ou detê-los?

Desde o primeiro momento, a resposta da Europa aos refugiados sírios revela como os ideais do continente se chocam com a realidade intransigente das leis europeias de imigração e asilo. Depois dos naufrágios de outubro, os líderes europeus prometeram aumentar as operações de resgate no Mediterrâneo.

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Mas a política europeia é repleta de contradições. Neste ano, Alemanha e Suécia prometeram asilo e benefícios generosos para refugiados sírios, fato que levou milhares de sírios a pagar valores extorsivos a contrabandistas para fazer a perigosa travessia do Mediterrâneo.

Quando chegam à Itália, porém, os sírios se veem enredados em burocracia. A lei europeia exige que a polícia os cadastre como refugiados na Itália. Ora, pessoas que pedem asilo precisam encaminhar seus pedidos no país onde foram cadastrados como refugiados.

Poucos sírios querem se asilar na Itália, onde a economia vive uma recessão e há poucos benefícios para migrantes. Entretanto, uma vez que tenham deixado suas impressões digitais na Itália, mesmo que eles consigam chegar à Suécia ou à Alemanha, eles podem ser mandados de volta à Itália.

"As pessoas são solidárias conosco", disse Abeer. "Mas não deixei Damasco para viver desse jeito. A pobreza é tão ruim quanto a guerra." Ela pediu para ser identificada com apenas um nome, por medo de dizer alguma coisa que possa levar a represálias contra familiares seus que permanecem na Síria.

O resgate de Abeer no mar, em 2 de outubro, aconteceu semanas depois de sua fuga da Síria.

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Ela e sua família tinham planejado sair da Itália rapidamente e viajar até a Suécia. Em vez disso, passaram quase um mês na Itália levantando dinheiro para a viagem, tentando fugir das autoridades. "Pensei que as coisas seriam mais fáceis", comentou mais tarde, em Milão. "Mas, não. Nossos sonhos começaram a se desgastar."

Resgate no mar

Ela e sua família saíram da Síria em 13 de setembro. A empresa de seu marido foi destruída num bombardeio. Seu filho adolescente escapou por pouco de levar um tiro. Um homem foi morto num carro estacionado diante da casa deles. Em outro dia, Abeer encontrou uma cabeça na rua.

Ela começou a vender coisas —anéis, um colar, um computador, seu celular. Parentes e amigos lhe enviaram dinheiro, até ela levantar US$ 11 mil. Viajar à Europa por terra é muito difícil; por isso, a maioria dos sírios paga contrabandistas para levá-los de barco. Abeer e sua família foram de avião até o Egito e passaram 15 dias se deslocando entre esconderijos em Alexandria, até serem levados às pressas para uma pequena embarcação.

A maioria dos sírios viaja partindo do Egito, em vez da Líbia, e muitos dos que vão para a Europa são da classe média, incluindo farmacêuticos, engenheiros e comerciantes. Em entrevistas com dezenas de sírios que hoje estão na Itália, vários disseram ter rejeitado a ideia de ir para a Jordânia, Líbano ou Turquia porque a Europa oferece estilos de vida e oportunidades profissionais semelhantes aos que eles deixaram para trás.

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O trajeto que passa pelo Egito pode levar seis dias ou mais. Os contrabandistas cobram entre US$ 1.000 e US$ 3.500 por pessoa para levar refugiados até as águas próximas à Sicília.

Geralmente eles deixam o Egito com refugiados numa embarcação "mãe" maior que reboca um barco pesqueiro menor. Chegando às águas italianas, os refugiados são obrigados a passar para a embarcação menor, recebem um telefone via satélite e números de emergência para os quais ligar na Itália. Os contrabandistas voltam para o Egito na embarcação maior, deixando os sírios à deriva no mar, às vezes por vários dias, esperando para serem resgatados.

"Eles chegam desesperados", comentou Luca Sancilio, que foi comandante da estação da Guarda Costeira em Siracusa até meados de novembro, quando foi promovido para um cargo novo em Roma. "Já vimos pessoas chegando em cadeiras de rodas e pessoas com pernas ou braços amputados."

Os contrabandistas abandonaram o barco de Abeer no quinto dia, prometendo que ele chegaria à terra em três horas. Mas já tinham se passado 15 horas, e as pessoas se desesperaram.

Então o navio italiano de resgate apareceu. "Quando o vimos, pensamos: ‘Estamos salvos, finalmente’", contou Abeer.

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Quando o barco de resgate se aproximou, os sírios também lembraram uns aos outros: nada de deixar impressões digitais na Itália.

Punhos cerrados

Em 2012, barcos da Guarda Costeira em Siracusa resgataram 572 migrantes do mar. No final de novembro deste ano, o número de migrantes resgatados já passava de 11.500, em sua maioria sírios ou palestinos.

É comum ocorrerem tragédias. Equipes da Guarda Costeira já encontraram corpos nos barcos. Os dois filhos de uma mulher morreram na viagem, e ela atirou seus corpos ao mar.

Mas também há alegria. No final de setembro, um sírio chamado Jaffar chegou ao escritório da Guarda Costeira chorando. Tinha escapado para a Finlândia um ano antes. Agora, viera à Sicília em busca de seu irmão e dois sobrinhos.

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Horas depois de os refugiados chegarem ao cais, as autoridades devem tirar suas impressões digitais e cadastrar cada pessoa num banco de dados europeu. Os sírios com frequência cerram os punhos, recusando-se a deixar as pontas dos dedos à mostra.

Abeer deveria representar seu grupo junto às autoridades italianas. Mas, chegando ao cais, ela quase desmaiou de exaustão e foi levada ao hospital. Quando retornou, um confronto tenso estava em curso entre a polícia e um grupo de homens sírios. Vinte pessoas já tinham tido suas impressões digitais tiradas à força. "Fui até o portão e pedi para falar com o policial", contou Abeer. "Ele falou: ‘Ok, prometo que não vou obrigar mais ninguém’."

Num centro de triagem nos arredores de Siracusa, migrantes recém-chegados aguardam audiências sobre asilo. O portão fica aberto, e, quando os sírios do barco de Abeer chegaram ao centro, várias pessoas saíram em disparada, correndo em direção à estação de trem mais próxima. A família de Abeer permaneceu no local por dois dias, telefonando a amigos e parentes para levantar € 2.000. Depois eles caminharam dez quilômetros até a estação rodoviária. Partir foi fácil. Mas também significava que agora estavam no país como ilegais.

Fuga da Itália

Numa sexta-feira em outubro, famílias descansavam sobre bancos num parque na periferia de Milão. A maioria das pessoas no parque era síria, incluindo Abeer e sua família.

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Eles estavam diferentes. Abeer já não usava véu. As duas garotas adolescentes usavam jeans justos e bijuterias. Abeer tinha deixado seus cabelos soltos e se maquiado. Eles estavam tentando se misturar- à população, para não serem notados como migrantes ilegais.

Os € 2 mil que tinham custeado sua saída da Sicília estavam quase no fim. A família estava vivendo como fugitiva. Tentou viajar de avião à Dinamarca, mas foi barrada por um guarda no aeroporto de Milão.

No aeroporto, a polícia pressionou a família a deixar suas impressões digitais registradas. Abeer e sua família se negaram, e finalmente um funcionário solidário os deixou partir, dando-lhes um conselho: manter distância de trens e aviões. Sem ter como sair de Milão, dormiram no chão de uma mesquita.

Na estação ferroviária central de Milão, debaixo de anúncios da Hugo Boss e Dolce & Gabbana, algumas centenas de sírios estavam agachados no mezanino.

"Uma semana atrás, havia 40 a 50 pessoas aqui", disse Jesu Issam Kabakebbji, registrando mais de 240 nomes.

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As autoridades de Milão decidiram ajudar, criando um "corredor humanitário" extra-oficial, disponibilizando chuveiros em entidades beneficentes católicas e quartos em abrigos locais para sem-tetos. Para a família de Abeer, a oportunidade de escapar da Itália chegou de modo inesperado. Um contato na Alemanha concordou em vir de carro até Milão e levá-los a Dortmund.

O carro chegou a Milão em 25 de outubro. Dois dias depois, a família chegou à Alemanha. Após alguns dias, subiu num ônibus e depois num trem para a Suécia. A viagem levou 32 horas, mas a família chegou.

Comparecendo diante de autoridades suecas, Abeer e sua família finalmente deixaram suas impressões digitais. Em novembro, deram entrada nos pedidos de autorização de residência. "Temos a esperança de termos um quarto, não uma casa", disse Abeer antes de deixar Milão. "De poder abrir a porta, fechar a porta. De sermos uma família outra vez."