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Retrato de Theo van Gogh | ARIE KIEVIT/HOLLANDSE HOOGTE
Retrato de Theo van Gogh| Foto: ARIE KIEVIT/HOLLANDSE HOOGTE

Não há nada que diferencie esta rua de qualquer outra da zona leste de Amsterdã. Mas foi aqui que, em 2 de novembro de 2004, o holandês de origem marroquina Mohammed Bouyeri, 26, dizendo estar agindo em nome de Alá, matou a tiros o cineasta, apresentador de televisão e provocador holandês Theo van Gogh, degolando-o em seguida.

Neste país bem organizado de 17 milhões de habitantes, que se orgulha de sua tolerância, o crime abriu uma discussão polarizadora. Seria o assassinato o exemplo de uma guerra maior entre o islã radical e o Ocidente? Ou foi o ato de um jovem muito perturbado, membro de uma geração de jovens muçulmanos holandeses que se sente excluída? Qual é a linha que separa a livre expressão do discurso de ódio? A autocensura terá tomado conta das pessoas?

A discussão ainda corre solta. No âmbito cultural, entretanto, o quadro é mais complexo. O assassinato inspirou livros e pelo menos um filme. Um retrato inquietante de Bouyeri criado em 2005 pela artista Marlene Dumas foi exposto com destaque no museu Stedelijk.

Vários atores, escritores e figuras culturais eminentes evitam falar do assassinato. Uma pessoa se negou a fazer comentários por medo de que suas palavras pudessem ser exploradas por populistas de direita. Outras temeram que mesmo a mais leve crítica a Van Gogh pudesse ser interpretada como apologia à sua morte e provocasse críticas por parte dos "amigos de Theo", como são conhecidos os defensores mais ferrenhos do cineasta morto.

"A polarização vem crescendo cada vez mais", disse o romancista Abdelkader Benali, holandês de origem marroquina.

Um monumento discreto e semiabstrato a Van Gogh foi erguido num parque em um bairro de classe média repleto de açougues halal e cafés da moda. O rosto do cineasta é mostrado em múltiplos perfis, referência à defesa que ele fazia da liberdade de expressão.

O assassinato "mudou a forma como nos víamos", comentou Leontine Coelewij, curadora de uma retrospectiva do trabalho de Marlene Dumas no Stedelijk. "Pensávamos que coisas desse tipo jamais aconteceriam na Holanda. Aquilo realmente assinalou uma virada."

O jornalista Theodor Holman, um dos melhores amigos de Van Gogh, expressou uma opinião mais cortante, dizendo que o medo de causar ofensa sufocou a liberdade de expressão no país. "A tolerância foi convertida em covardia", opinou.

Durante anos, em seus escritos e suas participações na TV, Theo van Gogh (parente distante do pintor Vincent van Gogh) revelava prazer em antagonizar pessoas. Ele lançou insultos grosseiros contra todos os setores respeitados da sociedade holandesa multicultural do pós-guerra, incluindo judeus e muçulmanos. Mas também ajudou a levar atores muçulmanos para a televisão holandesa, como em "Najib e Julia", história ao estilo de "Romeu e Julieta" transmitida em 2002.

Dois anos depois disso, a televisão holandesa exibiu o curta-metragem "Submission, Part I", que Van Gogh fez com Ayaan Hirsi Ali, refugiada somali que se converteu em política holandesa. No filme, versos do Alcorão são escritos sobre os corpos de mulheres nuas, para protestar contra o que Ali e Van Gogh consideravam ser o status subserviente das mulheres no islã. O assassinato do diretor, em consequência direta do filme, inaugurou um período tenso na Europa.

De acordo com Benali, que se descreve como muçulmano secular, todos os homens muçulmanos passaram a ser vistos como suspeitos na Holanda. "Você enfrenta diariamente uma quantidade enorme de ódio", disse.

O romance mais recente de Benali, "Bad Boy", é sobre um kickboxer holandês de origem marroquina. "Quando faço leituras do livro, as pessoas me perguntam quando vou voltar ao meu país."

Um diretor de televisão, Abdelkarim el-Fassi, e dois atores muçulmanos holandeses lançaram uma campanha de mídia social em que holandeses filhos de imigrantes tiram fotos deles mesmos segurando seus passaportes holandeses e os postam online com a hashtag #bornhere (nascido aqui).

O governo holandês disse recentemente que vai reabrir a investigação sobre o assassinato de Van Gogh, apurando também o que o serviço secreto holandês pode ter sabido sobre Bouyeri antes do crime.

Esse é o tema de "2/11", filme de Theodor Holman que propõe uma teoria improvável de que a CIA teria sido parcialmente responsável pelo crime, porque teria pressionado o serviço secreto holandês a não prender Bouyeri para poder usá-lo para chegar a figuras mais importantes com vínculos com a Al Qaeda.

O escritor holandês Leon de Winter incluiu Bouyeri e Van Gogh como personagens de seu romance de 2012 "Acts of Kindness", em que Van Gogh aparece como o anjo da guarda que protege crianças cuja escola foi alvo de um ataque terrorista.

Apesar de os livros de De Winter sobre suas origens judaicas o terem convertido em alvo de alguns dos ataques mais virulentos e bombásticos de Van Gogh, o escritor disse que continua certo de que quer viver no tipo de sociedade aberta que permite que as pessoas expressem seus pontos de vista, mesmo aqueles mais ofensivos.

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