O papa Francisco na Basílica de São Pedro após a eleição assumiu a burocracia do Vaticano assolada pela intriga e inércia| Foto: Claudio Peri

Menos de um ano após a eleição, o papa Francisco já transformou o tom do papado, confessando-se um pecador e declarando "quem sou eu para julgar" ao ser questionado sobre os gays, e ajoelhando-se para lavar os pés de detentos, incluindo muçulmanos.

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Menos aparente é como Francisco assumiu a burocracia vaticana tão assolada pela intriga e inércia que contribuiu, como acreditam agora diversas autoridades eclesiásticas, para a renúncia histórica de seu antecessor, Bento XVI, em fevereiro do ano passado.

Francisco vem substituindo continuamente conservadores por moderados enquanto a igreja se prepara para debater o papel de bispos dispersos na tomada de decisão do Vaticano e em uma ampla discussão sobre a família que poderia tocar questões delicadas, tais como a homossexualidade e o divórcio.

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O cardeal Raymond L. Burke, um dos norte-americanos do mais alto escalão no Vaticano, viu sua influência diluída sob o papado atual. Outro conservador, o cardeal Mauro Piacenza, foi destituído. Entre os bispos, o arcebispo Guido Pozzo foi colocado de lado. Francisco, 77 anos, também está separando os blocos rivais de italianos com influência entrincheirada na Cúria romana, a burocracia que comanda a igreja. Ele está se mostrando cada vez mais transparente em termos financeiros no obscuro Banco do Vaticano e derrubando o caminho hierárquico que muitos prelados passados passaram a vida escalando.

Ele deixou sua primeira marca no exclusivo Colégio de Cardeais que irá eleger seu sucessor ao nomear religiosos que em muitos casos vêm de países em desenvolvimento e do Hemisfério Sul. E enfaticamente instruiu os novos cardeais a não considerarem o cargo uma promoção nem desperdiçarem dinheiro com festas para comemorar.

"Foi um ano importante", afirmou o secretário de Estado, Pietro Parolin, segundo homem do Vaticano e uma das quatro autoridades no Vaticano que Francisco transformará em cardeal ainda este mês.

O clima dentro do Vaticano varia da adulação à incerteza e chega à profunda angústia. Várias pessoas disseram temer que Francisco fosse de departamento a departamento em busca de pessoas a serem destituídas. Outros sussurram a respeito de seis misteriosos espiões jesuítas que agem como os olhos e ouvidos do papa dentro do Vaticano. Autoridades antes poderosas agora se sentem deixadas de lado.

"É esquisito", disse uma autoridade elevada do Vaticano, que, como muitas outras, insistiram no anonimato por temer retaliação de Francisco. Ele contou que algumas autoridades deixaram de comparecer às reuniões. "Parecem adolescentes frustrados fechando a porta e botando os fones de ouvido." Quatro dias antes do Natal, Francisco se reuniu com a Cúria na Capela Clementina, saguão de recepções do século XVI no Palácio Apostólico, para realizar um dos discursos papais mais importantes do ano. Bento usou seu último discurso natalino para criticar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Francisco usou o seu primeiro para punir colegas na Cúria.

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Ele alertou que a Cúria corria o risco de deslizar "na direção da mediocridade" e se tornar uma "administração pesada e burocrática". Francisco também pediu aos prelados que sejam "opositores conscientes" da fofoca.

Foi uma repreensão penetrante à atmosfera venenosa que perturbou o papado de Bento XVI, e sobre a qual o ex-secretário de Estado, cardeal Tarcisio Bertone, costuma ser apontado como o culpado. Foi um lembrete de que Francisco, ainda que um papa novo, não desconhece as maquinações da Cúria, tendo se enredado na Argentina com uma facção conservadora poderosa. Agora Francisco está desmantelando o círculo de poder do cardeal Bertone, que liderava um grupo de conservadores com base na cidade italiana de Gênova. Em setembro, o papa destituiu o cardeal Piacenza, aliado de Bertone, do comando da poderosa Congregação do Clero.

Para alguns, foi um indício de que o novo papa poderia agir com alguma brutalidade. Várias autoridades vaticanas afirmaram que a maior transgressão do cardeal Piacenza foi enfraquecer seu antecessor, um prelado brasileiro próximo a Francisco que apareceu com ele no balcão da Basílica de São Pedro após a eleição.

O cardeal Burke, designado para a Congregação dos Bispos por Bento XVI, tinha enorme influência na escolha de novos bispos nos Estados Unidos. Em dezembro, Francisco o trocou por um cardeal mais moderado, Donald Wuerl, arcebispo de Washington.

Em homilia recente, Francisco alertou quanto ao perigo de se tornar um padre "bajulador". Segundo ele, sucumbir às tentações terrenas era para "padres politiqueiros, padres magnatas". Francisco também indicou um grupo de oito cardeais representando os cinco continentes para liderar a reforma da Cúria. Ele contratou consultores seculares e estabeleceu uma comissão especial para supervisionar o Banco do Vaticano. E embora tenha falado pouco sobre o abuso sexual de clérigos, ele formou outra comissão "para a proteção dos menores". O Vaticano continua sendo uma instituição desproporcionalmente italiana, com a Itália detendo o maior bloco de cardeais mesmo que agora represente somente quatro por cento dos católicos do mundo. A grande maioria dos funcionários do Vaticano é de italianos, com estabilidade vitalícia no emprego, às vezes, podendo ser gozada por gerações.

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A influência italiana indevida foi apontada como culpada por contas suspeitas, má gestão do Banco do Vaticano e pela difusão de fofocas que gerou um escândalo centrado no vazamento de cartas particulares de Bento XVI.

"O necessário é que neste estágio a cultura se torne menos italiana", assegurou uma elevada autoridade vaticana.

Francisco, cujo pai foi um imigrante italiano, e cuja segunda língua é o italiano, conta com aliados italianos importantes, incluindo Parolin, secretário de Estado, e os chefes de dois departamentos da Cúria que elevou a cardeais. Porém, analistas afirmam que ao passar por cima de centros de influência tradicionais da Itália, tais como Veneza, onde o arcebispo é próximo a Bertone, o papa mostra que tenta quebrar esquemas de progresso hierárquico consagrados na igreja local.

O papa interferiu na poderosa conferência dos bispos italianos. Tradicionalmente, os papas indicam o presidente da conferência italiana, mas Francisco pode introduzir eleições, como acontece em outras conferências. Na véspera do Ano-novo, o cardeal Burke não quis comentar as mudanças do Vaticano sem a permissão dos "superiores".

Semanas antes, ele parecia destinado a ser a voz mais proeminente da resistência, declarando na televisão católica que "não sabia bem por que" o papa acha que "estamos falando demais em aborto" e outras questões da guerra cultural. Ele lamentou "uma espécie de imprevisibilidade na vida em Roma". Simultaneamente, Francisco deu uma entrevista a um jornal na qual falou em "sensibilidade" e em abrir a igreja. "A prudência é uma virtude do governo. Da mesma forma que a audácia." Na semana seguinte, Francisco removeu o cardeal Burke de seu posto.

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