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 | FOTOgrafiaS DE bryan denton PARA The New York Times
| Foto: FOTOgrafiaS DE bryan denton PARA The New York Times
  • Bleicher (acima) com finalistas da Copa Al Kass, em Doha; Qatar diz que recrutamento é gesto humanitário, mas desperta desconfiança internacional
  • Finalistas nas peneiras de Doha esperam jogar num time qatariano no Senegal; à esq., o nigeriano Yahusa

Há pouco mais de uma década, Andreas Bleicher, então diretor de um dos centros de treinamento olímpico da Alemanha, chegou a esta pequena nação do golfo Pérsico, trazido pela família real local com a missão de ajudar a transformar o inglório programa nacional de futebol em algo digno de respeito no mundo.

Mas, com uma população nativa de apenas 300 mil habitantes, o Qatar simplesmente não tem jogadores jovens em número suficiente para formar uma equipe capaz de competir com times como Brasil, Argentina e Alemanha.

"Nós estávamos tentando construir um programa nacional com um conjunto de talentos do tamanho que você encontra em uma pequena cidade dos Estados Unidos", disse Bleicher.

Uma de suas primeiras contratações foi Josep Colomer, ex-olheiro do FC Barcelona, geralmente apontado como o descobridor de Lionel Messi, talvez o melhor jogador de futebol do mundo, quando Messi ainda era um menino na Argentina.

Colomer logo sugeriu que o Qatar importasse talentos da África, onde até as crianças nas aldeias mais afastadas crescem jogando bola. As possibilidades eram tentadoras. E se o Qatar despachasse olheiros para toda a África com o objetivo de identificar meninos talentosos e lhes oferecer bolsas de estudo para virem treinar na Aspire Academy, no Qatar, um novo e reluzente instituto desportivo?

Um plano ambicioso se seguiu, incluindo desde campinhos de terra no Senegal e Quênia até os palácios do Qatar e um deteriorado estádio rural belga.

No primeiro ano, o Qatar testou 430 mil meninos em 595 localidades de sete países africanos. Mais de sete anos depois, a Aspire já avaliou 3,5 milhões de jovens atletas em três continentes, e escolheu os mais promissores para odisseias mundo afora.

O programa levou Samuel Asamoah de Gana para o Qatar, o Senegal e a Bélgica, onde a família real adquiriu uma equipe de divisões inferiores, que serve como posto avançado para o desenvolvimento de seus jogadores. Anthony Bassey, oriundo de Uyo, Nigéria, fez uma viagem semelhante.

A dimensão do programa está de acordo com os desejos mais amplos do Qatar de se estabelecer como um ator importante em todas as suas atividades.

O governo e a família real do Qatar estão determinados a usar a imensa riqueza de gás e petróleo do país para elevar sua posição internacional nos terrenos da arquitetura, comércio, cultura, educação e esportes. Existe até um plano formal, chamado Visão Nacional do Qatar 2030, que promete transformar o país em uma "uma sociedade avançada" dentro de 16 anos.

Essas ambições são bem visíveis em Doha: seis universidades americanas estão alojadas em um vasto complexo chamado Cidade da Educação; o museu de arte projetado por IM Pei rivaliza com o museu de história concebido por Jean Nouvel; e novas construções estão por toda parte.

Quanto a suas ambições futebolísticas, o Qatar tem um prazo para apresentar um time que pareça digno do cenário mundial: a Copa do Mundo de 2022, que será disputada no emirado.

Quando o Qatar ganhou o direito de sediar o torneio, em 2010 —num processo manchado por acusações de suborno desenfreado—, conquistou automaticamente também uma vaga na disputa.

Muito provavelmente, será a estreia do Qatar em Copas. Os Marrons, como o time é conhecido, estão em 100° lugar no mais recente ranking mundial, entre Zimbábue e Moldova.

Quando as atenções mundiais se voltarem para Qatar em 2022, a família real quer provocar admiração. Apresentar estádios de primeira linha e um espetáculo incomparável será fácil. Muito mais difícil será montar um time digno de crédito.

Qatar caça talentos ao redor do mundo

Bleicher e Colomer garantem que vêm procurando os melhores jovens atletas africanos, como forma de proporcionar uma disputa de alto nível para os meninos qatarianos, e não para que os jogadores africanos possam jogar pelo Qatar em 2022.

"Poderia acontecer?", disse Bleicher. "Suponho que talvez alguns dos jogadores queiram representar o Qatar, porque o Qatar ajudou quando seus países de origem não fizeram isso."

Mas as regras de naturalização tornam isso difícil, pois exigem que os jogadores vivam no país durante cinco anos após completarem 18. Bleicher disse acreditar que provavelmente os atletas africanos acabarão representando os seus países de origem. Os críticos, no entanto, são muito céticos em relação ao Aspire Football Dreams, o nome do programa de recrutamento.

Alguns acreditam que o Qatar tentará naturalizar alguns dos meninos. Outros dizem que o programa foi concebido para agradar à comissão FIFA que escolheu a sede da Copa de 2022. E alguns temem que os meninos, selecionados aos 13 anos de idade, estejam sendo explorados.

No entanto, o Qatar garante que há propósito mais elevado, um impulso humanitário de ajudar uma região tão sofrida, ao mesmo tempo que isso contribui para alterar a imagem do emirado, muito criticado por grupos de direitos humanos devido ao tratamento abusivo dispensado a trabalhadores migrantes.

Um plano ambicioso

Em abril de 2007, o Aspire anunciou planos para enviar olheiros a Marrocos, Camarões, Gana, Quênia, Nigéria, Senegal e África do Sul.

As peneiras foram amplamente divulgadas, e o projeto teve apoio da Nike. Quando os olheiros chegavam às aldeias dirigindo veículos 4x4, muitas vezes eram atacados por jovens que queriam chamar sua atenção.

Esses olheiros convidaram 50 jogadores de cada país para um teste de uma semana nas respectivas capitais. Os três melhores garotos de cada país, junto com os três melhores goleiros em geral, foram então levados para a Aspire Academy, em Doha, para mais testes.

A joia da coroa do centro de treinamento do Aspire é o seu ginásio polivalente, supostamente o maior do gênero, que inclui um campo de futebol de dimensões oficiais, uma piscina olímpica e um auditório de 1.200 lugares. Em todo o CT, alto-falantes emitem gorjeios de pássaros.

O Aspire originalmente pretendia oferecer bolsas de estudo para apenas três finalistas, que então viriam a Doha para viver e treinar. Mas, quando os olheiros notaram a riqueza de talentos, foram liberadas bolsas para duas dúzias de meninos, muitos dos quais morariam em uma academia em Saly, no Senegal.

De acordo com um documento interno ao qual o "New York Times" teve acesso, os executivos do Aspire inicialmente viram a academia senegalesa como um lugar para desenvolver um potencial "banco de talentos" para os clubes de futebol do Qatar, reforçando a imagem do Aspire como "o melhor banco de talentos do mundo".

Uma difícil transição

Nos anos subsequentes, o Aspire passou a abranger 17 países, incluindo Guatemala, Costa Rica, Paraguai, Vietnã e Tailândia.

Há dificuldades idiomáticas, e os jogadores têm saudades de casa. Segundo um acordo obtido pelo "Times", cada bolsa de estudos oferecia alojamento, alimentação, ensino e treino, mais algumas centenas de dólares por mês para gastos pessoais, além de passagens para que os meninos viajassem aos seus países e seus pais fizessem visitas. As famílias também recebem até US$ 5 mil por ano, uma soma que, em muitos casos, seria várias vezes a renda anual de uma família.

No começo de 2014, havia cerca de 70 meninos morando na academia do Senegal. No ano passado, o Aspire levou Lionel Messi ao CT senegalês para anunciar planos de distribuir 400 mil mosquiteiros e colocar um profissional médico em cada cidade africana onde o Football Dreams opera.

O programa atraiu críticas. O jornal britânico "The Observer" informou em novembro de 2007 que alguns consideravam o então chamado Aspire Africa uma forma de "tráfico de pessoas" sob disfarce humanitário, "com a única intenção de abastecer o Qatar com jogadores para a sua futura seleção nacional".

Outros viram o programa como parte do esforço qatariano de se tornar sede da Copa. Em entrevistas, autoridades locais e executivos do Aspire negaram que isso fosse verdade.

Mas documentos analisados pelo "Times" sugeriram o contrário. Durante o verão de 2009, o departamento de marketing e comunicação da Aspire Academy elaborou uma proposta que detalha precisamente como o Aspire Football Dreams poderia ajudar a candidatura do Qatar a sede da Copa do Mundo.

"Todos os países onde os projetos são conduzidos devem votar no Qatar", dizia a proposta.

Sucesso e tensão

Em janeiro, o CT da Aspire Academy fervilhava com a aproximação da final da Copa Al Kass. Equipes juvenis de elite do mundo todo estavam em Doha para o torneio. O elenco do Aspire, formado por meninos do Qatar, terminou em oitavo lugar, e a equipe sub-16 do Aspire Football Dreams —com meninos de Senegal, Camarões e Gana— chegou à final contra o Real Madrid.

Jean Jules Sepp Mvondo, um camaronês de 15 anos, foi o capitão do Football Dreams. Alguns anos antes, Jean Jules (conhecido como Jiji) estava entre centenas de milhares de meninos de 13 anos selecionados por olheiros do Aspire em visita à África.

"O Football Dreams é uma grande coisa em Camarões", disse Jiji, que descreveu como chorou quando seu pai lhe contou que havia recebido um telefonema convocando-o.

Apenas os melhores jogadores do Football Dreams chegam a dar o passo seguinte, que é jogar no time do Aspire na Bélgica. A pressão era palpável na final da Copa Al Kass. Quando os meninos do Football Dreams venceram, numa dramática disputa de pênaltis, eles saíram correndo pelo gramado, erguendo os executivos e membros da comissão técnica, inclusive Colomer.

Jiji, que viria a ser eleito o melhor jogador da partida, ficou chorando no campo, em pé. Militares qatarianos pousaram de paraquedas no gramado, trazendo a taça.

Os meninos não tinham ideia do que estava por vir. Alguns deles logo se mudariam para uma pequena cidade da Bélgica.

E, daqui a quatro anos, os melhores deles poderão estar jogando na Copa do Mundo de 2018, que acontecerá na Rússia.

Mesmo que não estejam vestindo a camisa marrom do Qatar, esses jogadores levarão ao emirado o respeito internacional que sua família real até agora foi incapaz de estabelecer em seu próprio território.

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