US$ 1,90 por dia: quem ganha menos que isso está abaixo da linha | Foto: Illustration by Matt Rota for the New York Times/Matt Rota

As pessoas podem pensar que o tipo de pobreza extrema que preocupa uma organização global como as Nações Unidas há muito desapareceu deste país; entretanto, não foi isso que o relator especial Philip Alston concluiu ao fim de sua viagem investigativa pelos EUA.  

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Parece inconcebível que, hoje em dia, alguém aqui pode ser tão miserável quanto os mais necessitados na Etiópia e no Nepal; acontece que, recentemente, tais comparações se tornaram bem mais fáceis. O Banco Mundial decidiu, em outubro, incluir países de alta renda em suas estimativas globais de populações carentes – e é assim que agora podemos traçar comparações entre os norte-americanos e as nações mais necessitadas.  

Interpretados de maneira adequada, os números sugerem que a ONU tem razão – e os EUA, um problema de natureza urgente. E também que é preciso repensar a assistência aos menos favorecidos com nossas doações.  

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Segundo o Banco Mundial, 769 milhões de pessoas viviam com menos de US$1,90 por dia em 2013, consideradas as mais pobres do mundo. Dessas, 3,2 milhões vivem nos EUA e outros 3,3 milhões, em diferentes nações de alta renda (principalmente Itália, Japão e Espanha).  

Por mais estarrecedores que esses números sejam, eles ignoram um fato muito importante: há necessidades na vida dos países ricos, frios, urbanos e individualistas que são menos vitais nas nações pobres. O Banco Mundial ajusta suas estimativas de acordo com as diferenças de preços entre umas e outras, mas ignora as disparidades das exigências.  

Comparação

Um indiano que mora no interior gasta pouco ou nada com moradia, aquecimento e creche; um boia-fria nos trópicos não tem que se preocupar com roupas ou transporte. Mesmo nos EUA, não é por acaso que há mais sem-teto dormindo nas ruas de Los Angeles, onde o clima é mais ameno, do que em Nova York.  

Robert Allen, economista de Oxford, recentemente calculou a linha da pobreza para os países ricos que se equipara com mais precisão ao limite de US$1,90 das nações mais pobres, baseada em necessidades, e chegou a uma média de mais ou menos US$4 por dia. Assim, na comparação da miséria absoluta entre os EUA e a Índia, por exemplo, devemos usar o valor de US$4 para o primeiro e US$1,90 para o segundo.  

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Uma vez feito isso, descobre-se que há 5,3 milhões de norte-americanos vivendo na pobreza extrema pelos padrões globais. É um número pequeno comparado ao da Índia, por exemplo, mas maior que o de Serra Leoa (3,2 milhões) ou Nepal (2,5 milhões), praticamente o mesmo do Senegal (5,3 milhões) e apenas trinta por cento menor que o de Angola (7,4 milhões). O Paquistão (12,7 milhões) tem o equivalente ao dobro de pobres norte-americanos e a Etiópia, quatro vezes.  

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Esses dados reforçam o que se vê nos EUA. Kathryn Edin e Luke Shaefer documentaram os horrores diários da vida de milhões de pessoas que vivem com US$2 por dia, tanto nas cidades como no interior. A etnografia de Milwaukee de Matthew Desmond explora o pesadelo da procura por abrigo urbano entre os mais miseráveis.  

Moradia

É difícil imaginar uma pobreza pior que essa, em qualquer lugar do mundo. De fato, é exatamente o custo e a dificuldade de encontrar moradia que dificultam a vida de tantos norte-americanos – e são justamente essas despesas que o Banco Mundial deixa de fora na contagem global.  

É claro que a população vive mais e melhor nos países ricos. Com apenas poucas (e geralmente escandalosas) exceções, a água é potável, o consumo dos alimentos, seguro, o saneamento básico, universal, e uma forma ou outra de assistência médica é acessível a todos; no entanto, todos esses elementos essenciais ao bem-estar geralmente faltam aos norte-americanos pobres. Mesmo em termos gerais, a expectativa de vida nos EUA é menos do que se espera de sua renda nacionalhá lugares, inclusive – como o Delta do Mississippi e grande parte dos Apalaches –, onde esse índice é mais baixo que em Bangladesh e no Vietnã.  

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Além disso, muita gente, especialmente os brancos sem educação superior, registra uma piora na qualidade da saúde: como demonstra a pesquisa que fiz com minha mulher, a economista de Princeton Anne Case, para esse grupo a expectativa de vida está caindo; a taxa de mortalidade por drogas, bebidas alcoólicas e suicídio, aumentando, e o longo declínio no número de mortes por doenças cardíacas parou.  

Eu acredito, como a grande maioria, que temos obrigação de ajudar os verdadeiramente necessitados. Para aqueles que creem que esse auxílio é eficaz, isso se reflete em suas próprias doações ou no apoio a organizações nacionais ou internacionais como a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional, o Banco Mundial ou a Oxfam.  

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Há anos, na determinação desses gastos, as necessidades dos norte-americanos (ou europeus) pobres recebem pouca prioridade em relação às dos africanos e asiáticos. Como economista preocupado com a miséria global, há tempos aceitei essa estrutura prática e ética – tanto que eu mesmo sempre priorizei o pobre de longe em vez do pobre de perto.  

Recentemente, e tendo em vista esses novos dados, comecei a duvidar tanto do raciocínio como do apoio empírico. Há milhões de pessoas nos EUA cujo sofrimento derivado da indigência material e da falta de saúde é igual ao maior que aquele vivido por africanos e asiáticos.  

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Ajuda

Considerações práticas reforçam o argumento do reconhecimento dos pobres deste país no contexto global; as chances de monitoramento dos efeitos dos gastos domésticos são maiores do que as das despesas estrangeiras. O dinheiro gasto por e para os conterrâneos, seja individual ou coletivamente, é sujeito à avaliação democrática por doadores e receptores, que podem ver os efeitos e mostrar sua (des)aprovação nas urnas. Se já é difícil para quem manda dinheiro aos projetos na África saber as benesses geradas pela sua doação, quanto mais descobrir se os beneficiários o receberam ou se apreciaram a ajuda.  

A ajuda oficial dos EUA é quase toda estipulada pela geopolítica, sendo os principais receptores Afeganistão, Israel e Iraque. E apesar de se comprometer a eliminar a miséria mundial de US$1,90 por dia, não têm como alvo a carência doméstica. A Grã-Bretanha insiste em gastar 0,7 por cento de seu PIB em ajuda humanitária internacional, apesar das dificuldades ocasionais para encontrar projetos apropriados e do sofrimento causado pela austeridade em seu próprio território.  

Nada disso significa que devemos nos fechar aos "outros" e só cuidarmos de nós mesmos. A cooperação internacional é vital para a manutenção da segurança global, do fluxo comercial e da habitabilidade do planeta.  

Entretanto, é hora de parar de pensar que só os não norte-americanos são realmente pobres. O comércio, a imigração e as comunicações modernas nos deram redes de amigos e parceiros em outros países. Devemos muito a eles, mas o contrato social com nossos conterrâneos implica em direitos e responsabilidades únicos que, às vezes, precisam ter precedência, principalmente quando eles são tão pobres quanto os pobres mais pobres do planeta.  

(*Angus Deaton é professor emérito de Economia e Questões Internacionais da Universidade Princeton, professor de Economia da Universidade do Sul da Califórnia e vencedor do Nobel de Economia em 2015.)  

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