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Obras da nova capital administrativa do Egito, um dos projetos do programa de investimentos em infraestrutura Nova Rota da Seda
Obras da nova capital administrativa do Egito, um dos projetos do programa de investimentos em infraestrutura Nova Rota da Seda| Foto: EFE/EPA/KHALED ELFIQI

A Rota da Seda foi uma rede histórica de rotas entre a Ásia, a Europa e a África que propiciou o comércio entre diversos países, principalmente de produtos têxteis chineses (daí o seu nome).

No cenário geopolítico mundial, o nome ganhou outro significado quando a China lançou um projeto quase homônimo em 2013 para financiar projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento. O ditador Xi Jinping chegou a chamar a Nova Rota da Seda de “projeto do século”.

Entretanto, no mundo pós-pandemia, a ambiciosa cartada chinesa enfrenta desafios que colocam em dúvida o seu futuro.

Em setembro do ano passado, o laboratório de pesquisa e inovação americano AidData divulgou um levantamento sobre 13.427 projetos com financiamento chinês, somando US$ 843 bilhões, em 165 países em todo o mundo anteriores e posteriores à criação da Nova Rota da Seda.

De acordo com a pesquisa, os empréstimos chineses no exterior para projetos de infraestrutura quintuplicaram durante os primeiros cinco anos de implementação do programa (2013-2017).

Entretanto, o grande projeto chinês para exercer influência econômica e política no mundo pode estar saindo dos eixos. Segundo o AidData, 35% do portfólio de projetos de infraestrutura da Nova Rota da Seda “encontrou grandes problemas de implementação, como escândalos de corrupção, violações trabalhistas, riscos ambientais e protestos”.

Em comparação, apenas 21% dos projetos de infraestrutura do governo chinês fora do programa enfrentaram problemas semelhantes.

Outra questão é que os projetos da Nova Rota da Seda levam muito mais tempo para sair do papel: de acordo com o AidData, em média são necessários 1.047 dias para implementar um projeto de infraestrutura do programa e 771 dias para implementar outro financiado pelo governo chinês fora dele.

Esses problemas e o alto nível de endividamento junto ao gigante asiático (42 países agora têm comprometimentos da sua dívida pública junto à China superiores a 10% do PIB) estão levando a suspensões e cancelamentos de projetos em maior número do que antes de 2013.

A Bolívia, por exemplo, já suspendeu ou cancelou US$ 1 bilhão em projetos financiados pela China desde a criação da Nova Rota da Seda, e o Equador, cerca de US$ 417 milhões, segundo o AidData.

De acordo com dados coletados pelo Rhodium Group, grupo de pesquisa com sede em Nova Iorque, as renegociações de países participantes da Nova Rota da Seda junto a instituições financeiras chinesas somaram US$ 52 bilhões em 2020 e 2021, enquanto nos dois anos anteriores os valores foram de US$ 16 bilhões.

Além desses problemas, dois fatores ganharam evidência depois da divulgação do estudo do AidData: a desaceleração da economia chinesa e o anúncio dos líderes do G7 de investir US$ 600 bilhões em um projeto de infraestrutura para países em desenvolvimento para concorrer com o programa chinês.

Entretanto, em entrevista à Gazeta do Povo, o pesquisador Ammar Malik, um dos autores do estudo do AidData, considerou que esses dois pontos são ameaças menores para a Nova Rota da Seda – o endividamento dos países que aderiram ao programa é realmente o maior desafio. Confira os principais trechos:

Desde que o estudo do AidData sobre a Nova Rota da Seda foi publicado, surgiram notícias de desaceleração do crescimento econômico chinês. Isso pode comprometer o programa, que, como mostrou o estudo, já enfrentava dificuldades?

A resposta resumida é não – não acho que isso vai comprometer a Nova Rota da Seda. A explicação em resumo é: a projeção é que essa desaceleração será pequena. A China continuará com expressivos superávits comerciais e suas reservas cambiais permanecerão muito altas. O país sempre terá liquidez em suas reservas estrangeiras para estabelecer novos compromissos em larga escala por meio da Nova Rota da Seda, se tudo mais favorecer para que sejam implementados.

Mas aqui farei uma explicação mais longa relativa ao histórico: a ligação entre o desempenho econômico doméstico da China e os níveis de compromisso da Nova Rota da Seda é complicada, então vamos começar com alguns antecedentes. Como discutimos na seção de abertura de nosso relatório, parte da motivação da China e da criação da Nova Rota da Seda foi que ela tinha excesso de recursos financeiros (ou seja, reservas de bancos estrangeiros no banco central) e capacidade de construção (ou seja, principalmente empresas estatais) interna que queria aplicar no exterior.

No caso das reservas externas, o mecanismo é simples: a China exporta muito mais do que importa, e esse superávit comercial resulta em grandes reservas de ajuda externa no seu banco central. Em junho, elas estavam em pouco mais de US$ 3 trilhões, conforme estatísticas oficiais! Antes da crise financeira de 2008, muitos desses dólares estavam alocados em títulos do Tesouro dos Estados Unidos, mas depois que as taxas de juros foram reduzidas pelo Federal Reserve, os retornos se tornaram incrivelmente baixos. O banco central chinês pediu a bancos de fomento (China Development Bank e China Eximbank) e bancos comerciais estatais (por exemplo, ICBC, Bank of China) que buscassem projetos financiáveis ​​que aceitassem taxas de juros mais altas, o que começaram a fazer em maior número.

Se levarmos em conta as projeções do último relatório World Economic Outlook do FMI [Fundo Monetário Internacional], a economia da China passará por uma desaceleração do crescimento, mas ele ainda permanecerá numa faixa saudável de 3,3% em 2022 e 4,6% em 2023. Os superávits comerciais estão na casa das centenas de bilhões de dólares por ano nos últimos anos, o que deve continuar a ser o caso no futuro próximo. Isso significa que a China seguirá tendo liquidez para continuar investindo grandes quantias para apoiar projetos da Nova Rota da Seda em todo o mundo.

As dificuldades que identificamos na implementação da Nova Rota da Seda estão relacionadas a fatores locais, como escândalos de corrupção, problemas ambientais, violações trabalhistas e protestos, além de alguns casos em que a opinião pública em relação à China vem piorando apesar dos investimentos da Nova Rota da Seda. De qualquer forma, o aumento do endividamento nos países em desenvolvimento que emprestaram pesadamente da China (por exemplo, Sri Lanka e Paquistão) criará mais problemas para o futuro da Nova Rota da Seda do que a desaceleração econômica doméstica da China.

O risco de uma recessão global também poderia inviabilizar a Nova Rota da Seda?

À medida que os preços globais de commodities e alimentos aumentam e muitas economias onde estão ocorrendo investimentos da Nova Rota da Seda enfrentam dificuldades para equilibrar seus orçamentos, elas terão dificuldades para honrar obrigações de dívida externa junto a todos os credores, incluindo a China. A lista de países identificados pelo FMI como altamente endividados inclui países como Quênia, Tajiquistão e Haiti, que também receberam empréstimos da Nova Rota da Seda.

No Paquistão, por exemplo, embora a dívida com a China seja apenas um quarto do total da dívida externa, ela certamente está contribuindo para o sobreendividamento contínuo porque o balanço de pagamentos atingiu um estágio crítico devido a valores de importação maiores resultantes do aumento dos preços do petróleo e de outras commodities. Embora esses fatores não estejam diretamente relacionados à participação do Paquistão na Nova Rota da Seda, todos os projetos chineses estão ameaçados devido à possibilidade de não pagamento.

EUA e aliados fizeram anteriormente anúncios semelhantes de promessas de investimentos em larga escala, mas houve pouca continuidade em termos de ações concretas

Seria interessante observar as tendências nos próximos anos quando os países em desenvolvimento enfrentarem problemas para pagar os empréstimos chineses; em resumo, como os credores chineses vão reagir? Até agora, vimos que mesmo quando a dívida é reescalonada, eles [credores] não oferecem descontos nos empréstimos (ou seja, querem receber todos os pagamentos devidos, com juros) e apenas adiam os pagamentos para facilitá-los.

Quais podem ser as consequências do anúncio do G7 de junho de lançar um programa de US$ 600 bilhões para competir com a Nova Rota da Seda? Como a China lidará com essa competição?

A resposta, em resumo, é que os Estados Unidos e seus aliados fizeram anteriormente anúncios semelhantes de promessas de investimentos em larga escala, mas houve pouca continuidade em termos de ações concretas. Estou cético de que este anúncio possa criar fortes problemas para a Nova Rota da Seda em curto prazo.

Desde o início do governo Biden, os Estados Unidos e seus aliados anunciaram várias novas iniciativas globais, incluindo o Build Back Better World em junho de 2021, a Blue Dot Network, o Global Gateway da União Europeia e, claro, o Quad na região do Indo-Pacífico. Por trás de todos esses anúncios, existe a crença de que o capital e o conhecimento técnico do setor privado do Ocidente podem ser mobilizados a serviço dessas iniciativas. Os Estados Unidos e o Reino Unido destinaram mais recursos para suas agências de financiamento do desenvolvimento (empréstimos) do que haviam feito em qualquer momento anterior. No entanto, eles não possuem o mesmo tipo de bancos comerciais estatais ou empresas estatais que a China tem, que poderiam ser orientados a atuar em países-chave para projetos de grande orçamento.

Por exemplo, em maio deste ano, o senador Marco Rubio escreveu uma carta contundente ao CEO da Corporação Financeira Internacional para o Desenvolvimento dos EUA, na qual pediu que explicasse por que a agência, responsável por coordenar a aplicação de recursos para financiamento do desenvolvimento (empréstimos), ainda não conseguiu competir seriamente com a China. Isso, afirmou ele, apesar do fato de o Congresso americano ter fornecido autoridade e liquidez adicionais a essa agência em 2018 para, em parte, competir com a Nova Rota da Seda. Por esse motivo, acho que por enquanto é uma questão de esperar para ver.

Quando o estudo do AidData foi divulgado, a guerra na Ucrânia ainda não havia começado. O conflito pode influenciar o futuro da Nova Rota da Seda?

O impacto mais direto da guerra na Nova Rota da Seda tem sido por meio do aumento dos preços de alimentos e commodities, questão que eu já comentei. Se o conflito continuar ou se expandir, os reflexos no sistema financeiro global e a recessão econômica podem diminuir ainda mais a capacidade dos países em desenvolvimento de pagar os empréstimos da Nova Rota da Seda, o que, por sua vez, abalaria a confiança das autoridades chinesas em sua capacidade de manter essa iniciativa global operando.

Porém, em termos de financiamento chinês direto no desenvolvimento da Ucrânia, observe que, de acordo com os dados que coletamos, a participação da China na dívida pública ucraniana é relativamente baixa – US$ 1,6 bilhão ou aproximadamente 1,5% do PIB do país.

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