O major-general Igor Konashenkov disse que patógenos de doenças mortais teriam sido destruídos com urgência em laboratórios ucranianos no dia da invasão russa| Foto: EFE/Maxim Shipenkov
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Em um vídeo recentemente liberado pelo Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU), um soldado russo recém-capturado obtém a permissão de telefonar para sua mãe e informar que foi preso, mas está vivo.

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Durante o diálogo, os dois entram em uma discussão. O filho diz para a mãe que o que ele presenciou é uma “verdadeira guerra”, e ela discorda dizendo que não há guerra alguma, e sim uma operação militar especial.

A situação escala ao ponto em que ela diz para seu filho, um prisioneiro de guerra, que tudo isso aconteceu em resposta a um ataque anterior, feito pelo Ocidente, que utilizou a Ucrânia para desenvolver o novo coronavírus e enviar ondas migratórias de pássaros infectados para dizimar a população russa.

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O diálogo entre mãe e filho revela uma das facetas da guerra propagandística que envolve a invasão da Ucrânia pela Rússia, uma vez que a questão das armas biológicas tornou-se uma das justificativas para o conflito.

De fato, nos últimos anos a Rússia repetiu inúmeras vezes a acusação de que vários laboratórios ucranianos estariam desenvolvendo armas biológicas como a peste negra ou o antraz, porém, com a invasão do país, pela primeira vez foram fornecidos documentos que supostamente comprovariam tais pesquisas.

O que verdadeiramente dizem os documentos apresentados pelo Kremlin?

No dia 6 de março, o Ministério da Defesa da Federação Russa publicou documentos supostamente provando que armas biológicas estariam sendo desenvolvidas na Ucrânia.

O representante oficial do departamento, major-general Igor Konashenkov, disse que em 24 de fevereiro os patógenos de peste negra, antraz, tularemia, cólera e outras doenças mortais teriam sido destruídos com urgência nos laboratórios de Poltava e Kharkiv. O microbiólogo russo Yevgeni Levitin, PhD em biologia molecular, classifica as alegações do Kremlin como “uma mentira absolutamente descarada e incompetente”.

De acordo com o pesquisador, os documentos capturados pela Rússia e apresentados ao público através da agência estatal RIA Novosti expõem as diretrizes de segurança em laboratórios microbiológicos com pesquisas consideradas de baixo risco, contendo instruções do Ministério da Saúde da Ucrânia para que os patógenos potencialmente perigosos fossem destruídos no dia 24 de fevereiro, a fim de evitar sua disseminação devido à guerra.

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Além disso, os documentos contêm a lista das cepas destruídas nestes dois laboratórios. “Patógenos causadores da peste negra, antraz, tularemia, cólera – absolutamente nada disto se encontra nos documentos publicados”, diz Levitin. “O cálculo é simples: as pessoas não entendem ucraniano e nem latim e, por isso, não conhecem o nome dos patógenos.”

O cientista acrescenta que, segundo os próprios documentos vazados, de todas as cepas pesquisadas nestes laboratórios, apenas uma é classificada internacionalmente como sendo de “média periculosidade”, o Corynebacterium diphtheriae.

“É um patógeno potencialmente perigoso, mas completamente inviável para a utilização enquanto agente causador da difteria. Para contrair tal doença, seria necessário engolir uma colher inteira desta cultura e somente então uma pessoa poderia ficar doente”, explica o microbiólogo, acrescentando que atualmente toda a população europeia encontra-se vacinada contra a difteria através da vacina tríplice bacteriana (DTP).

Outras cepas apresentadas pelo governo russo como armas biológicas incluem bactérias comuns à microflora do trato respiratório e da pele, além de doenças oportunistas, que podem prejudicar a saúde humana em condições de deficiência imunológica.

“Uma destas cepas, o Bacillus licheniformis, é uma bactéria com a qual se lida todos os dias. Encontra-se ela em qualquer lugar, inclusive no prato de borsch que foi comido no dia anterior”, ironiza o cientista, citando o prato típico da culinária russa e ucraniana à base de beterraba e repolho.

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“O que há nessas culturas? Absolutamente nada. Elas são o campo comum de pesquisa para a microbiologia e a epidemiologia em qualquer lugar do mundo. Não há cepa nenhuma neste grupo que seja especialmente patogênica”, conclui Levitin.

A segunda rodada de documentos liberados pelo Kremlin

Três dias após o primeiro vazamento de documentos, o governo russo liberou novas informações, desta vez sobre os laboratórios localizados nas cidades de Lviv e Yavor, que também destruíram suas pesquisas em caráter de emergência.

Nestes arquivos, vê-se um apanhado de materiais das mais diversas origens, desde convites para workshops e instruções acerca da biossegurança, até listas de patógenos recebidos pela Ucrânia da própria Rússia.

Porém, ao contrário das pesquisas nos dois primeiros laboratórios, nestes havia patógenos altamente perigosos, como o do antraz e da peste negra em sua variante “vacinal”. “As cepas classificadas deste modo são selecionadas para terem baixa carga viral e patogenicidade, pois são destinadas ao estudo e à preparação de vacinas”, afirma o microbiólogo russo.

Ele acrescenta ainda que a presença de cepas de alto grau de periculosidade é a norma em qualquer instituto epidemiológico ou laboratório de análises clínicas pelo mundo. “Quando alguém faz um exame de hissopado na garganta, o especialista que coleta a amostra precisa compará-la com algo para ver que doença está se desenvolvendo no paciente”, aponta ele.

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Outro dado importante que corrobora a visão do pesquisador russo sobre o caráter das pesquisas na Ucrânia é que a própria lista de cepas virais estudadas pelo laboratório de Lviv está disponível ao público em sua página, onde também se indica que foram realizados inúmeros estudos envolvendo amostras de cada patógeno; de acordo com o instituto, no total foram colhidas 18 amostras em busca de vestígios de antraz no solo da região.

“Isso não apenas desbanca a ideia do ‘desenvolvimento de armas biológicas’, mas até mesmo o acúmulo de material perigoso em laboratório”, conclui o cientista, afirmando ainda que na própria Rússia existem centenas de laboratórios com permissão oficial para trabalhar com este e outros patógenos altamente perigosos e em quantidades muito maiores.

O efeito propaganda

Em resposta às alegações do Ministério da Defesa da Rússia, a Comunidade dos Graduados da Faculdade de Biologia da Universidade Estatal de Moscou circulou uma carta aberta encabeçada pelo microbiólogo russo-americano Eugene Koonin, um dos mais reconhecidos biólogos do mundo, e divulgada na Rússia por Yevgeni Levitin, destinada aos principais meios de comunicação da Rússia, expondo as incongruências das alegações feitas pelos órgãos oficiais do Estado.

Segundo Levitin, as informações divulgadas pelo governo russo não são levadas a sério pelos seus pares na comunidade acadêmica e científica de seu próprio país, porém muitos têm medo de falar abertamente sobre o assunto.

“É por isto que decidi subscrever a esta carta, que representa simplesmente o senso comum da comunidade acadêmica de que tais alegações são simplesmente fraudulentas e desprovidas de qualquer seriedade”, justifica.

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Muitos meios independentes veicularam o protesto, porém a mídia oficial ignorou completamente a carta, apesar de haver editado algumas alegações do texto original sobre os laboratórios na Ucrânia “para tornar menos óbvia a discrepância entre as alegações e a documentação apresentada”, pontua o microbiólogo.

De acordo com ele, não há preocupação por parte do Estado russo de que os dados sejam verossímeis a pesquisadores russos e seus pares ao redor do mundo. “A acusação da criação de armas biológicas é urgentemente necessária, e para este momento em específico; não para daqui a seis meses e não para a comunidade internacional. Esta acusação é projetada para ter um efeito imediato sobre a sociedade russa”, destaca.

O microbiólogo afirma ainda que a carta foi lida por muitos cientistas renomados dentro da Rússia, que avaliam do mesmo modo as alegações do Kremlin e privadamente apoiam o protesto; porém, ante a proposta de participarem da divulgação aberta de tal informação, Levitin diz que a resposta mais comum foi: “E vale a pena? Se uma mentira tão óbvia quanto esta continuar a ser levada a sério, eles podem até pensar que haja realmente algo lá... mas isto não passa de um evidente absurdo”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]