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| Foto: ILYA NAYMUSHIN/REUTERS

A cada primavera, Sergei Osipov e algumas dezenas de companheiros seguem até os campos e florestas de Zui, na Rússia, para uma colheita macabra: eles reviram a terra úmida em busca de ossos que ficam perto da superfície — são restos de soldados soviéticos mortos em confrontos com as forças nazistas alemãs.

É um trabalho infernal, mas quem mais vai fazer? É nosso sangue, é nossa memória.

Vladimir Korolyov, agricultor que ajuda na busca de corpos de soldados soviéticos ainda desaparecidos.

“Nossos avós estão todos repousando por aqui nesta terra. Não podemos esquecê-los”, afirmou Osipov, de 53 anos, um construtor que também é líder de uma brigada voluntária de buscas chamada “Águia”.

20 milhões

de militares e civis russos morreram em confronto com os alemães na Segunda Guerra Mundial. Pelo menos 2 milhões ainda são dados oficialmente como desaparecidos.

Setenta anos após o fim da Segunda Guerra, a memória da Grande Guerra Patriótica, como ela é conhecida na Rússia, ainda é palpável. A União Soviética perdeu mais de 20 milhões de soldados e civis no conflito. Cerca de 2 milhões permanecem desaparecidos, em comparação com cerca de 74 mil militares norte-americanos ainda sumidos desde o conflito.

Brigadas russas surgiram durante a abertura política

As brigadas de buscas de soldados mortos na Segunda Guerra Mundial se multiplicaram no fim dos anos 1980 na Rússia, durante a glasnost, a abertura política, quando as pessoas começaram a falar abertamente sobre a escala das perdas, que havia sido longamente acobertada.

As perdas foram especialmente altas na região de Rzhev, 150 km a oeste da capital Moscou. Lá, os alemães estavam bem abrigados e ceifaram as ondas de integrantes mal treinados da infantaria soviética, dizem historiadores.

A guerra tem particular ressonância no entorno de Rzhev. Após repelir o ataque alemão na capital, no fim de 1941, os comandantes soviéticos lançaram tropa atrás de tropa contra o inimigo em retirada na área desse entroncamento ferroviário. Historiadores dizem que o Exército soviético sofreu 2 milhões de baixas em pouco mais de um ano, nas batalhas conhecidas como “moedoras de carne de Rzhev”, já que quase metade dos soldados do Exército Vermelho ali morreram, desapareceram ou foram aprisionados pelos alemães. Para se ter uma ideia da dimensão da tragédia soviética, os Exércitos Aliados liderados pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido sofreram 225 mil baixas na Batalha da Normandia, na França, em 1944.

“Não há família aqui que não tenha perdido alguém”, disse Valery Smirnov, de 50 anos,funcionária do governo regional em Rzhev.

A cidade está repleta de lembranças das batalhas da Segunda Guerra. Monumentos e cemitérios contendo milhares de restos estão espalhados pela cidade e pelas vilas próximas. Casais de noivos tradicionalmente visitam a chama eterna, perto do obelisco aos libertadores da cidade que contempla o Rio Volga. E o ano escolar sempre começa com uma “lição para recordar”.

Centenas de voluntários escavam regiões do oeste da Rússia a cada ano em busca de ossos de soldados desaparecidos. Alguns foram enterrados em valas comuns; outros ficaram onde caíram, em trincheiras, florestas e pântanos, às vezes presos nas carcaças de seus aviões derrubados.

“A guerra ainda não acabou até que o último soldado seja enterrado”, disse Osipov, citando um general russo do século 18. Não à toa, as páginas das brigadas de buscas nas mídias sociais têm vários pedidos para “ajudar a encontrar o vovô”.

Essas memórias são agora projetadas sobre a disputa entre Moscou e o Ocidente por causa da Ucrânia. Autoridades russas e a televisão estatal chamam as forças do governo ucraniano de “fascistas”; já os separatistas pró-Rússia adotaram como símbolo a fita preta e laranja de São Jorge, promovida como um símbolo da vitória soviética.

O Kremlin comemorou a vitória em 1945 com uma triunfante parada militar, ontem, a fim de mostrar uma Rússia inabalável diante das sanções ocidentais. Os líderes do Ocidente não participam do evento.

“É ofensivo”, disse Osipov em relação à ação “esnobe” do Ocidente. “Nós libertamos todo o território dos fascistas, e agora nós somos os ocupantes? Eles estão reescrevendo tudo”, acusa o ex-oficial soviético.

Agricultores buscam restos de parentes

Para muitos, a busca pelos russos mortos durante a Segunda Guerra Mundial é impulsionada pela perda pessoal. Sergei Petukhov, chefe da brigada de buscas em Rzhev, cidade de 60 mil habitantes 150 km a oeste de Moscou, faz buscas há mais de 20 anos. Ele perdeu os dois avôs na guerra, um deles perto da cidade. “Eu esperava encontrá-lo”, disse. “Ainda espero agora.”

A brigada “Águia”, de Osipov, trabalha nos campos e florestas a sudoeste de Rzhev. Dezenas de milhares de soldados soviéticos romperam as linhas alemãs na área, no início de 1942, mas ficaram isolados e sofreram baixas enormes.

Os moradores começaram as buscas mais ativamente há cerca de 15 anos, quando acabaram encontrando os ossos de um chamado “soldado da superfície”, que estava deitado onde caiu há mais de 50 anos, disse Vladimir Korolyov, agricultor de 56 anos e membro do grupo.

Neste ano, eles estabeleceram um campo a vários quilômetros da moradia mais próxima, em busca dos restos de 150 soldados enterrados em duas grandes fossas comuns. São orientados por uma carta de décadas atrás de membros da vila a autoridades descrevendo as fossas ao sul da principal rodovia da vila de Zui, abandonada nos anos 1970. Os encarregados da busca confiam em moradores e têm o apoio de um grupo que viajou 2,4 mil km de ônibus do Cazaquistão,uma ex-república soviética que perdeu milhares de pessoas no entorno de Rzhev.

Em uma tarde ensolarada no fim do mês de abril, os encarregados das buscas enfiavam espetos de metal no solo para buscar os restos. Eles dizem que podem sentir a diferença entre uma pedra, um metal e ossos.

Diante da pista, eles começam a cavar, desenterrando um capacete soviético enferrujado, o cano de um rifle e granadas. Dois dias antes, haviam descoberto um esqueleto com uma bala entre suas escápulas e chamuscado nos ossos.

Alguns soldados levavam cápsulas de plástico contendo papéis com dados, mas muitos dos escritos eram apenas superstições. Às vezes, algum pertence fornece um nome. A maioria dos restos, porém, não pode ser identificada. “É um trabalho infernal, mas quem mais vai fazer?”, diz Korolyov. “É nosso sangue, é nossa memória.”

Homem que tomou o Reichstag diz não odiar os alemães

O russo Aleksandr Bessarab foi um dos oficiais do Exército Vermelho que comandou o ataque ao Reichstag, episódio que precipitou a capitulação do regime nazista há 70 anos. Hoje, ele diz ter ódio dos alemães.

Foto histórica mostra a bandeira soviética no Reichstag alemão.Wikimedia Commons

“Os alemães são bons. Eu os respeito profundamente por sua honestidade e pelo desejo de serem os melhores em qualquer aspecto da vida”, diz Bessarab, um coronel retirado e escritor.

Em abril de 1945, ele recebeu a árdua missão de dirigir o terceiro e último ataque contra o simbólico parlamento alemão.

Os soviéticos chegaram ao coração de Berlim em 23 de abril, mas o rio Spree impedia o avanço da artilharia, o que ameaçava os planos do ditador Stalin de tomar a cidade antes de Estados Unidos e Reino Unido.

“Em meados de abril nosso ânimo era vitorioso, mas a batalha por Berlim foi brutal. Primeiro tivemos que atravessar 30 quilômetros de canais, rios e lodaçais para chegar à cidade”, conta.

“Compreendemos que os alemães não estavam dispostos a se render. A resistência era feroz. As defesas alemãs estavam muito bem armadas. Tinham morteiros e artilharia pesada, além de vários franco-atiradores”, lembra Bessarab.

Foi então que o marechal Gueorgui Jukov mandou Bessarab tomar o Reichstag. “‘Outra vez fiquei com o mais difícil’, pensei”. Bessarab, que se apresentou como voluntário em dezembro de 1941, recorda que Stalin ordenou a tomada do Reichstag, “sem destruí-lo”.

Mas havia um problema. Para atravessar o rio só havia uma ponte, a Moltke, a 600 metros do edifício, que era bombardeada pela aviação americana e britânica. “Como os ocidentais não podiam chegar a Berlim, queriam evitar que nós fizéssemos antes. Então, Jukov disse ao (presidente dos Estados Unidos, Dwight) Eisenhower em pessoa que se não deixasse de bombardear a ponte, o Exército Vermelho atacaria as tropas norte-americanas.”

No terceiro ataque, na madrugada de 30 de abril, Bessarab comandava 500 soldados. O Reichstag era defendido por cerca de 5 mil homens. “Imagino que morreram quase todos”, lembra. “Quando cheguei ao edifício, estava tudo em chamas. Hitler há muito tempo já não estava ali, mas em um bunker. Só depois soubemos que tinha se suicidado”. Horas depois, a bandeira soviética já tremulava sobre a cúpula do Reichstag, imagem registrada em uma foto que entrou para a história.

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