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Campo de refugiados de Thaingkhali, um dos que abrigam os refugiados da minoria rohingya, em Bangladesh | ADRIANE OHANESIAN/NYT
Campo de refugiados de Thaingkhali, um dos que abrigam os refugiados da minoria rohingya, em Bangladesh| Foto: ADRIANE OHANESIAN/NYT

Mohammad Hossain conhece o homem que liderou o ataque à sua aldeia, tendo se juntado aos soldados de Mianmar para pegar seus vizinhos rohingyas e "cortá-los em pedaços", como descreveu. Ainda segundo ele, dois anos antes, essa pessoa o trancou em uma masmorra e queimou suas pernas com uma haste de metal quente e enfiou agulhas em suas unhas. 

Foi o mesmo homem que estuprou Mostafa Khatun repetidamente durante vários dias e depois cortou a garganta de seu marido durante o ataque dos soldados à aldeia, segundo ela mesma conta. 

Quase duas dúzias de refugiados muçulmanos rohingyas compartilharam histórias semelhantes, detalhando anos de opressão e abuso que culminaram no massacre na aldeia de Chut Pyin, em Mianmar, há um ano. Todos disseram que um homem é o principal responsável – e sabem onde mora, sabem o número de seu celular. Ele é Aung Thein Mya, o administrador ainda responsável por várias aldeias, incluindo Chut Pyin. E não há sinais de que ele um dia seja punido. 

Difícil responsabilização

Um ano depois que os militares de Mianmar começaram sua campanha mais ampla de violência contra a etnia – queimando aldeias, matando e forçando centenas de milhares a fugir para Bangladesh depois que insurgentes atacaram vários postos policiais – não há muito progresso nos procedimentos de responsabilização. 

Os esforços da comunidade internacional, pouco convincentes, basicamente se concentraram na liderança do país: os generais acusados de orquestrar a matança e a expulsão, e a líder civil de Mianmar, Aung San Suu Kyi, laureada com um Nobel da Paz em 1991 e cujo fracasso em deter a violência atraiu críticas no exterior. 

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Thein Mya não é soldado. É administrador civil e parte da minoria étnica rakhine, perseguida por muito tempo pelos militares e pela maioria budista do país, os birmanes, mas que se juntou à campanha contra os rohingyas. 

 Em uma entrevista telefônica, Thein Mya negou as acusações de abuso e disse que nem sequer estava presente durante o massacre, contradizendo mais de uma dúzia de testemunhas. 

O abuso descrito pelos moradores de Chut Pyin, que na língua rohingya é chamada de So Farang, ecoa testemunhos de aldeias de toda a região. E reforça as preocupações de ativistas de direitos humanos sobre a capacidade dos refugiados, que agora chegam a mais de um milhão, de regressar pacificamente à sua pátria. 

Ódio étnico

Após décadas incitando a animosidade entre rakhines e rohingyas, transformando vítimas em conspiradores, as autoridades budistas birmanesas fizeram do ódio étnico a realidade do estado de Rakhine, uma faixa da terra ao longo da Baía de Bengala no oeste de Mianmar, habitada pelos rohingyas há séculos. "As duas comunidades vivem com medo uma da outra", disse Dominik Stillhart, diretor de operações do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. 

Um relatório publicado em julho pelo grupo de defesa Fortify Rights descreve como os militares, com a ajuda de budistas locais, meticulosamente planejaram o genocídio e outros crimes contra a humanidade um ano antes dos ataques. Ferramentas afiadas que poderiam ser usadas como armas foram confiscadas, cercas em torno de casas dos rohingyas foram demolidas e milhares de tropas foram enviadas para o estado de Rakhine. 

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Durante esse ano, e os anteriores, Thein Mya manteve os rohingyas controlados por um estado de terror, disseram testemunhas da etnia, roubando seu gado e colheitas, cobrando taxas exorbitantes para tudo, desde os direitos de pastoreio até as propostas de casamento, e impondo punições duras mesmo para pequenas infrações, afirmaram os moradores. 

Por telefone, Thein Mya, que ainda está no cargo, parecia quase orgulhoso. Negou as acusações e insistiu que tinha uma relação cordial com seus vizinhos rohingyas, mesmo que tenha se referido a eles usando insultos raciais, ou como "bengaleses", um termo destinado a transmitir a falsa ideia de que não são nativos de Mianmar, mas sim imigrantes de Bangladesh vivendo ilegalmente no país. 

"Os rohingyas queimaram as próprias casas e fugiram por razões que desconheço, mas agora que se foram, a vida para mim e para meus vizinhos melhorou", afirmou. "Não quero que voltem. Nossa aldeia é pacífica sem os bengaleses", completou. 

A operação

Embora numerosos relatos retratem Thein Mya como o arquiteto de grande parte do sofrimento dos rohingyas em seu distrito, ele também é uma peça de uma máquina muito maior: a opressão metódica das minorias étnicas pelos militares, conhecidos como Tatmadaw, e pela maioria budista de Mianmar. 

Como administrador local, Thein Mya responde aos Tatmadaw e teria que adotar políticas opressivas no governo contra os rohingyas ou sofrer a ira das forças de segurança, segundo Matthew Smith, executivo-chefe da Fortify Rights, que monitora a violência contra a minoria. "Eles são extensões do Estado, e agem como tal. Em alguns casos, cometem abusos violentos contra a população local", disse Smith. 

Em 27 de agosto de 2017, Thein Mya chegou à seção rohingya de Chut Pyin por volta das 9h, acompanhado por um grupo de soldados, relatam testemunhas, e roubou a vaca de uma viúva. O que aconteceu a seguir foi descrito por seis pessoas, incluindo Shom Khatun, a dona do animal. Thein Mya abateu a vaca e preparou sua carne com curry. Poucas horas antes da violência começar, ele se sentou com seus companheiros e comeu em frente das pessoas que estava prestes a massacrar. 

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As mortes começaram por volta das duas da tarde.  Abdul Hashem, um líder religioso de 73 anos de idade, disse que estava com um grupo de homens na mesquita antes das orações da tarde. Karima Khatun, de 20, afirmou estar limpando a cozinha quando viu soldados se aproximando de sua casa. Roushn Ali, 48 anos, contou que ouviu alguém dar uma ordem para todos saírem de suas casas. 

Thein Mya parecia estar ajudando soldados a identificar alvos, disseram testemunhas. Hossain falou que o viu conversando ao telefone imediatamente antes de o tiroteio começar. "Estamos prontos deste lado. Venha atirando. Mate todo mundo", ele conta ter ouvido Thein Mya dizer. 

"Depois disso, começaram a atirar", afirmou. Hossain assistiu ao massacre escondido em um lago com sete outras pessoas. "Tinha gente morrendo. Pessoas feridas gritavam de dor. Estavam sendo queimadas vivas. Algumas estavam escondidas nas colinas, outras, nos lagos, nos arbustos, nos banheiros". 

No centro da carnificina estava Thein Mya, embora os relatos de testemunhas variem, distorcidos pelo tempo e pelo trauma. Alguns disseram que ele estava carregando um rifle de assalto e se juntou aos soldados no tiroteio; outros diziam que carregava apenas uma faca ou uma longa espada. 

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Fatima Khatun conta que o viu jogar uma criança pequena em uma casa em chamas. "O bebê estava fugindo. A mãe fora baleada, então ele estava assustado. O administrador o agarrou e o atirou ao fogo", disse ela. 

Grupos de direitos humanos documentaram narrativas semelhantes. Em um relatório de junho, a Anistia Internacional, citando testemunhas, descreveu Thein Mya como "líder dos justiceiros que participaram do incêndio da aldeia". Moradores de Chut Pyin disseram à Fortify Rights que civis budistas armados com espadas decapitaram pessoas que haviam sido baleadas por soldados. 

A matança durou até a noite, disseram testemunhas. Ali disse ter visto Thein Mya pela última vez no fim da tarde. "Eu o vi andando ao redor, à procura de sobreviventes. Se via alguém vivo, fazia questão de matar, cortando a garganta." 

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