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| Foto: Rallp Orlowski /Reuters

A comuna francesa de Saint-Denis, na região metropolitana de Paris, ganhou destaque na imprensa no mês passado. Foi lá que, próximo à entrada do Stade de France, explodiram as bombas que deram início à onda terrorista do dia 13 de novembro. O local também foi considerado chave, pela polícia francesa, na operação de caça aos terroristas nos dias que se seguiram. Um local tristemente privilegiado, enfim, para a observação do pior dia, em muitos anos, na capital francesa.

A brasileira Silvia Capanema, 36 anos, doutora em História pela École des Hautes Études em Sciences Sociales com uma tese sobre a Revolta da Chibata, elegeu-se conselheira (cargo equivalente ao de vereador) em Saint-Denis no ano de 2014, pelo Partido Comunista Francês. Por sua condição – mulher, estrangeira naturalizada, militante, agente pública – ela se tornou uma testemunha e uma voz importante para a compreensão do atual momento francês.

Em entrevista exclusiva para a Gazeta do Povo, ela fala sobre os desafios diante do terror e suas repercussões na política e no processo de interculturalidade na sociedade francesa.

Como a extrema direita francesa, em especial a mais radical, vem se comportando em relação aos fatos recentes envolvendo o terror?

A resposta é reforçar os argumentos anti-imigrantes, incluindo-se aí os migrantes sírios recentes, mas também os outros, já presentes no pais, como descendentes das antigas colônias francesas. Também fecham a questão indenitária num ideal de nacionalidade e identidade francesa fixos no tempo, como se a religião católica fosse superior. E, claro, a resposta da “segurança total”, com punições absurdas e perseguição de muitas pessoas, dos jovens e das minorias em particular. Há a extrema direita do Front National, cujos principais políticos reafirmam essa pauta, mas também do partido de direita de Sarkozy, que se chamam agora “Les Républicains”, que podem assumir pautas de extrema direita.

Como a sociedade francesa vem recebendo esse comportamento?

Na França, a prática comum é laica, não há uma “sociedade cristã”. O mais forte e comum é a noção de secularização ou de “laicité”. Esse é um grande ponto de comunhão entre os franceses - dizer “sociedade cristã” já é uma defesa da extrema direita. Porém, até mesmo em nome dessa “laicidade” há injustiças e muito preconceito antimuçulmano. O debate não está encerrado na França, mas a tendência é chegar a uma prática que defenda o Estado laico, mas também a expressão individual e pessoal de uma ou qualquer religião.

Qual o impacto dos acontecimentos recentes sobre a vida das pessoas comuns?

Há um crescimento da islamofobia. Por outro lado, há também um sentimento, na sociedade, de que o extremismo aumentou e as práticas indenitárias ligadas à religião muçulmana também. Há uma impressão geral, por exemplo, de que o número de mulheres que usam o véu aumentou, ou o número de mesquitas, ou a prática religiosa no meio da população jovem, filhos de imigrantes do norte da África mas nascidos na França. Isso causa medo em parte dos franceses. E há o crescimento de um pensamento, mesmo no meio intelectual, mais conservador e de reação a isso - escritores, jornalistas, etc. que dizem claramente que há uma ameaça islâmica na sociedade francesa. E essas pessoas pedem para que haja uma reação do Estado. Falam de “Guerra de Civilização”.

Eu acho que há um erro de interpretação, pois quem acredita e deseja uma “Guerra de Civilização” são as pessoas que sucumbem a uma tentação fascista, ou dos movimentos de extremismo religioso, ou da extrema direita.

Como você vê a presença islâmica na França?

A apropriação do Islã na França é uma hibridação. Não é a mesma coisa, segundo o que eu acredito, uma mulher que usa o véu aqui e outra que usa no Irã. Aqui é uma hibridação, uma forma de reafirmação indenitária e de ganhar confiança, uma busca espiritual e das raízes, num mundo em que há muita desestruturação. Ou até uma resposta à sociedade. A existência desse fenômeno não ameaça a sociedade livre, secularizada, etc. desde que essa outra parte da sociedade também se expresse, saiba se apoiar em seus valores e defender espaços. Eu acho que é preciso mesmo muito debate, refazer a sociedade civil francesa, e garantir espaços para todos. Inclusive, dar mais espaços para os jovens e novas gerações. Debater mesmo sobre questões de fundo.

Por exemplo, a questão da mulher na sociedade, da vida sexual, da liberdade sexual mesmo etc. - isso não é debatido. E todos ficam se concentrando na questão do “véu”, etc., sendo que a questão é outra. Vira um debate entre conservadores. E as conquistas progressistas ? É para isso que devemos partir.

Bairros pobres que concentram comunidades muçulmanas em cidades como Paris e Bruxelas são apontadas como fontes de recrutamento de jovens pelo Estado Islâmico. Por que isso acontece?

Claro que há a questão social. Bairros e cidades pobres, periféricos, precisam de mais recursos. E o Estado não quer fazer essa redistribuição pois teria de enfrentar os grandes grupos econômicos e a concentração de renda em outros lugares. Somente no dia em que isso for feito, em que for reestabelecida uma igualdade de meios concreta e real, é que poderemos atacar o sentimento de exclusão e suas possíveis respostas. Além disso, seria preciso realmente dar um novo lugar para os jovens na sociedade. Eu vejo por aqui, em Saint-Denis, eles querem emprego, moradia e possibilidade de ter um futuro. Não acho, claro, que a exclusão explique os atentados, mas ela fica muito evidente nesta hora, e é preciso realmente lutar contra a exclusão social e simbólica dessa “França de baixo”, que mora nos subúrbios populares, mas que acumula fatores de discriminação. Mas, enfim, sempre haverá violência, mas é preciso atacar às formas de violência de hoje e dar um lugar na narrativa histórica francesa para os países colonizados. Trata-se também de aceitar a mestiçagem cultural e de rever os parâmetros econômicos no sentido de uma distribuição de renda (e de capitais, econômicos, culturais…) mais igualitária entre centros e periferias e ate mesmo entre gerações.

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