Não é tão fácil, como parece, decifrar o temperamento do presidente Lula e acompanhá-lo na caminhada em ziguezague, entre tropeços e contradições, desde que a roda da ventura emperrou e inverteu a mão do destino por entre os percalços da crise de corrupção, das denúncias das CPIs, com respingos no governo, tudo apontando para dificuldades inesperadas na rota da reeleição.

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A simplicidade das previsíveis reações do vitorioso líder sindicalista começou a enroscar-se em hesitações, a perder o rumo no embaraço das contradições e no reconhecimento dos raros instantes de meditação solitária de que o seu governo, no mais otimista dos balanços, não consegue empatar os acertos com a pilha de erros, a bater a testa na lua.

Lula mudou, vai e volta com facilidade, diz e desdiz-se sem contrair um músculo do rosto sombreado pela barba grisalha. Nas coisas mais singelas do dia-a-dia, as pequenas contrariedades mexem com o fundo da alma, azedam a autocensura, toldam o azul da imagem que confere ao despertar, diante do espelho, na hora da verdade de espantar a noite com a sumária higiene matinal, antes do farto café da manhã com dona Marisa e os freqüentadores íntimos da Granja do Torto ou do Palácio do Planalto nos trinques, depois da reforma generosamente paga por um grupo de empresários.

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Nada como um exemplo para clarear as coisas. Na compreensível retranca do desconforto com a sua precária trajetória escolar – em percurso aos trancos e barrancos desde a infância, em Caetés (PE), no miolo do triângulo da seca do Nordeste – e a virada da coragem da mãe, dona Lindu, a heroína abandonada pelo marido Aristides de amargas lembranças, que decide a mudança para a aventura em São Paulo, em 13 dias de viagem no pau-de-arara. E que abre alas para o jovem Lula, com o certificado de conclusão do curso de torneiro mecânico pelo Senai, arrancar para a vertiginosa ascensão. Sempre que é cobrado pelo manifesto desinteresse pela leitura escapa pela tangente de menosprezar os letrados que não venceram na vida: estudo é bom, mas não é tudo e nem sempre o mais importante na luta por espaço ao longo da existência, consolava-se.

Mas, como a ponta do prego na botina que espeta o calcanhar, a insatisfatória bagagem do primário em três escolas públicas e do secundário no Senai, em curso paralelo ao do profissional, é um ponto dolorido na sensibilidade presidencial. E que se deixa perceber no desabafo de improvisos ou das conversas. Sempre no enovelado das hesitações e de conceitos que se opõem.

Não vazou para a maledicência da oposição a provável irritação de Lula com o registro, graças à competência do fotógrafo Gustavo Miranda, das anotações de próprio punho no verso do texto do discurso que proferiu em reunião do Conselho Alimentar, fixando temas a serem abordados no improviso. Textualmente: "Conselho – (1) Tem demandas do Conselho que precisa ser discutido. 2) Notícias boas e notícias ruins. Boas: Pnad–Zé Dirceu."

A ferroada doeu como o diabo. Lula esperou a hora e a vez para o singular troco, em exibicionismo contrário aos seus hábitos. Nos muitos improvisos do recente giro com o companheiro Hugo Chávez, presidente da Venezuela, pelas terras pernambucanas do Recife e Garanhuns, nos revides às injustas críticas da oposição, introduziu de passagem, em estudada displicência, esta pérola, que é um achado: "Eu agora estou mais dedicado a ler sobre a vida desses homens (Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek) para compreender um pouco a história do meu país e perceber que nem todo o mundo está acostumado a conviver com a democracia."

É uma pena que o presidente não tenha mencionado os livros de cabeceira do novo hábito das leituras históricas em que recolheu as sumárias informações sobre JK e Getúlio Vargas, para a correção de equívocos comprometedores.

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JK não foi vítima do "massacre da imprensa". Ao contrário, com a sua contagiante simpatia conquistou amigos entre repórteres e colunistas destacados, como Carlos Castello Branco, Murilo Melo Filho, Joel Silveira e dezenas de outros. Em tempo de liberdade de imprensa e do mais brilhante Congresso da fase dourada da oratória, foi criticado e defendido no debate entre governo e oposição.

Getúlio pagou a fatura da ditadura assumida do Estado Novo, com o fechamento do Congresso, a dissolução dos partidos, o exílio de adversários e a censura oficial à imprensa pelo DIP. Na volta, em 1950, nos braços do povo até jogada genial do suicídio em 24 de agosto de 1954, suportou a oposição vigorosa dos antigos desafetos e contou com a defesa dos aliados.

Nada além da rotina democrática em saudosos tempos de Congresso popular, de hábitos modestos, com sessões de segunda a sexta-feira, ampla cobertura da imprensa, em seções fixas nas páginas nobres de matutinos e vespertinos.

Saudemos o ingresso de Lula na sociedade decadente dos leitores das obras básicas. Se possível, com mais rigor na escolha de livros e autores.

Salve, salve!

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