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Afirma-se defender a democracia, mas na verdade o que se busca é proteger o sistema político do povo. De suas más escolhas, de sua imaturidade

Brados retumbantes de felicidade coletiva seguiram-se à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a constitucionalidade da Lei Complementar n.º 135/2010. Tal lei traz profundas modificações à Lei de Inelegibilidades que estão sendo celebradas como uma vitória da democracia e da moralidade em face de políticos desonestos. Alguns mitos e equívocos, no entanto, cercam a questão, a partir de um falso problema.

Afirma-se que a lei é de iniciativa popular e, portanto, cingida pela vontade do povo soberano. Embora tenha havido coleta de assinaturas para a propositura do projeto, o texto que foi aprovado não coincide com o apresentado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Também é herdeiro do Projeto de Lei Complementar n.º 168/93, encaminhado pelo Poder Executivo, e sofre modificações na Câmara de Deputados e no Senado Federal. O equívoco decorrente desse mito é achar que a norma deve ser declarada constitucional por causa dessa pretensa origem: o papel do Poder Judiciário é exatamente conter manifestações da soberania popular que contrariem a Constituição. O constitucionalismo tem como fundamento impedir que o povo – ou maiorias eventuais – sacrifiquem os valores basilares da sociedade em nome de um interesse ou sentimento momentâneo.

Outro ponto: os ministros que decidiram pela constitucionalidade da inelegibilidade sem condenação definitiva defendem que a inelegibilidade não tem natureza penal. O que não é sempre verdade. Algumas hipóteses têm, claramente, natureza sancionatória, pois, a partir da prática de uma conduta tida como indesejável, impõem ao agente uma diminuição em seus direitos. Ainda que se afirme que o princípio da presunção de inocência limita-se à esfera criminal (o que não é correto, sob o meu ponto de vista), tal leitura ameaça o exercício de direitos fundamentais, ao possibilitar sua restrição sem decisão judicial definitiva. Pior, a lei em alguns casos não exige sequer decisão judicial para tirar do cidadão o direito de disputar a preferência popular.

Mais grave para as conquistas do Estado de Direito é permitir que algumas inelegibilidades se apliquem a fatos anteriores à lei. A elegibilidade é um direito fundamental, e, como todos os direitos fundamentais, pode ser restringida, desde que as restrições sejam passíveis de justificação, sejam gerais e abstratas, não atinjam o núcleo do direito e não sejam retroativas. A aplicação da lei a fatos já ocorridos, a pretexto de moralizar a disputa eleitoral e retirar das próximas duas ou três eleições certos (e sabidos) candidatos, abre um precedente perigoso para todos os direitos fundamentais. Em nome do afastamento de Fulano e Beltrano (já conhecidos), os juízes passam a sopesar princípios (alguns "revelados" por eles) e tornam o sistema inseguro e seletivo.

Esclareça-se a questão. Imagine que em 2006 um cidadão tenha pescado em período proibido, sendo condenado à pena de um ano. Pois esse cidadão, que já cumpriu a pena por seu crime, descobre-se inelegível até 2014 (ou mais, dependendo da data da condenação), por força de uma lei aprovada em 2010! O mesmo passa com aquele que, eleito em 1998, renunciou em 2001, disputou as eleições de 2002 e 2006 e, pela lei de 2010, vê-se inelegível de 2001 até 2014. Não se trata de defender este ou aquele, mas impedir que sejamos surpreendidos por novos efeitos a fatos passados.

Finalmente, o falso problema. A lei retira do pleito candidatos "não cândidos" – que só serão representantes se o povo assim o desejar. Afirma-se defender a democracia, mas na verdade o que se busca é proteger o sistema político do povo. De suas más escolhas, de sua imaturidade. Ora, se o povo não sabe votar, talvez tenhamos de buscar outro nome para o regime político, em nome da honestidade. Que demonstre quem de fato decide.

Eneida Desiree Salgado, advogada, é professora de Direito Constitucional e Eleitoral da UFPR e do curso de mestrado da UniBrasil.

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