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Talvez um dos temas jurídicos mais relevantes do ano de 2016 tenha sido pautado ao apagar das luzes de 2015. Trata-se da Medida Provisória 703/15, que altera a Lei Anticorrupção em razão dos acordos de leniência.

Argumentos técnicos sobre a inconstitucionalidade da MP foram lançados e já tomam proporções políticas que talvez sejam impulsionadas pelo descrédito das últimas e recentes medidas provisórias editadas pelo governo ou pela desacreditação política que paira sobre o Executivo federal nos últimos anos. Fato é: não parece aceitável qualquer dos argumentos no sentido de desvirtuar o objetivo da medida. Menos crível ainda parece a razão de tais apontamentos.

Neste sentido, a análise das duas únicas hipóteses que parecem passíveis de enfrentamento técnico e razoável são: a) pela inconstitucionalidade, aquelas lançadas pelo ilustre procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU Júlio Marcelo de Oliveira; e b) pela constitucionalidade, aquelas lançadas pelo renomado Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji).

Os acordos de leniência, direcionados “pelas mãos” dos controles internos, não podem submeter-se a argumentos anacrônicos

A discussão se dá em razão do artigo 16, caput, e parágrafo 14 da MP. O procurador funda seus argumentos basicamente no seguinte aspecto: de que a MP é norma que tem “a pretensão de limitar a atuação do Tribunal de Contas da União apenas ao momento posterior à celebração dos acordos” e de que seria um “verdadeiro ato de violência contra o Tribunal de Contas da União e aberração jurídica o Poder Executivo pretender limitar a forma de agir do Controle Externo, que tem o poder-dever de fiscalizar o Poder Executivo”.

Já o Ibeji fundamenta sua análise sob o argumento de que “a correção da Lei Anticorrupção, ao afastar a instabilidade do modelo original do acordo de leniência, está em conformidade com as normas constitucionais, destacadamente com a segurança jurídica, com a promoção do desenvolvimento econômico e social e com a proteção do mercado nacional de infraestrutura”. Frisando ainda que “as novas regras proporcionam, a um só tempo, o ressarcimento dos prejuízos decorrentes da conduta ilícita, a aplicação de sanções contra a pessoa jurídica e a continuidade da atividade empresarial sob um rigoroso programa de integridade”.

Parece-me que a constitucionalidade da MP deve passar necessariamente pela seguinte análise: Existe independência constitucional dos controles internos e uma atividade de colaboração com a função exercida pelos Tribunais de Contas, ou haveria subordinação daqueles em relação à estes?

Na teoria, os Tribunais de Contas tendem a afirmar – reiteradamente – a autonomia dos controles internos; porém, ao que parece, essa autonomia é sempre dependente de um crivo legitimador da atividade de controle interno, em uma vinculação que vai na contramão do texto constitucional. Vejamos.

Não se discute que os Tribunais de Contas são órgãos dotados de autonomia constitucional. Os controles internos, por sua vez, possuem competência pautada pelos artigos 70 e 74 da Constituição e função auxiliar ao Tribunal de Contas em sua missão institucional, conforme expressamente manifesta o inciso V do artigo 74.

Ora, da mesma forma que a função auxiliar dos Tribunais de Contas não relativiza sua relevância, não poderia a mesma função amesquinhar as competências do controle interno ou subordiná-las ao crivo do controle externo, que concederia a “bênção” ao ato praticado. Evidente que, na condição de colaboração, os controles internos permanecem independentes e autônomos e afirmam sua constitucionalidade na prática de atos anteriores aos dos Tribunais de Contas e em clara colaboração a estes. É exatamente o que o texto da medida provisória promove, uma afirmação absoluta das competências dos Tribunais de Contas e dos controles internos, em complementariedade e colaboração.

Veja que os acordos de leniência são atos administrativos e, como tais, possuem competência imediata determinada no seio do Poder Executivo, o que por si só legitimaria sua utilização. Mas a MP foi além e previu a participação do Ministério Público e da Advocacia Pública, em nítida demonstração de legitimação institucional e democrática do acordo celebrado. Entender de outra forma seria retirar – ou ao menos descreditar – a legitimação constitucional do Poder Executivo e do Ministério Público.

Os acordos de leniência, direcionados “pelas mãos” dos controles internos e como instrumentos de modernização da administração, não podem submeter-se a argumentos anacrônicos tendentes a prejudicar sua implementação por práticas típicas do estamento burocrático brasileiro, tão bem versadas por Raymundo Faoro em sua obra Os donos do poder.

A constitucionalidade da Medida Provisória não está tão somente em sua conformidade com as normas constitucionais, mas também na autonomia constitucional dada aos controles internos e no seu papel auxiliar, independente e autônomo dos Tribunais de Contas.

Dizia Raymundo Faoro que “a história do Brasil é um romance, sem heróis”. Façamos da versada constitucionalidade da MP mais uma página desse romance, composta não por um herói, mas por vários personagens que – em colaboração – conduzam ao seu melhor final.

Rodrigo Pironti, advogado e doutor em Direito Econômico, é professor de Direito Administrativo e Constitucional e membro do Ibeji.
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