• Carregando...
A constitucionalidade exuberante da graça concedida a Daniel Silveira
| Foto: Fotográfo/Agência Brasil

Não me deterei, salvo num caso ou outro, na salmodia de autores ou colação de jurisprudência como são os chatíssimos estudos jurídicos nos quais se supervaloriza a referência, a citação, o que na maior parte das vezes traduz a impotência pensante disfarçada pelo argumento ad verecundiam.

Tenho sempre em mente a definição mais simples de ciência desde os rudimentos gregos, de modo que ciência: é aquilo que produz um conhecimento universal, pois aplica-se a todo e qualquer caso do objeto estudado; apresenta uma conclusão necessária, ou seja, que não pode ser outra, ainda que seja provisória e paradigmática; e é causal – aplicando-se isto à ciência jurídica (sim!), pois, do mesmo modo que no mundo natural a causa é aquilo que produz um efeito, no Direito temos que ao fato x deve corresponder um efeito jurídico; do contrário, não será um fato jurídico, logo, não sendo objeto do direito (mas haverá fatos extrajurídicos com reflexos jurídicos, o que é o caso da graça, como veremos adiante). O resto é só um labirinto de onde os Minotauros mais desconcertantes afloram no reinado da ilogia e da confusão, sendo meio princípio, meia lei, meia doutrina, meio qualquer coisa para bem usar tal metáfora mitológica grega, como soem ser algumas decisões ou ideias do ministro Alexandre de Moraes.

Pois bem, o que é a graça? Ela define-se universalmente, como primeiro item do conceito básico de ciência, no qual emprego a Navalha de Occam, como extinção de punibilidade determinada por outro Poder que não o jurisdicional. Diante desta premissa universal definidora de graça, entende-se que a graça é, portanto, oposta ao sufragado no processo judicial, pois, fosse decidida a graça pelo Poder Judiciário, seria pelo pleito de razões mediante um processo perante tal poder, deixando de ser graça para ser uma apuração dialético-processual judiciária.

A graça é um instituto longevo na história, como mitigação do rigor criminal, do erro judiciário, da injustiça da justiça organizada, quando a aplicação do Direito se extravia sem contemplar os elementos mais sensíveis ou essenciais da humanidade. Cito aqui meu velho amigo Serrano Neves, procurador de Justiça em Goiânia, que, ao contrário dos tolos que povoam majoritariamente o ideário jurídico antifideísta atual que perdem seu tempo grasnando contra a Cruz nas salas de audiência, dizia que este símbolo religioso nas salas de audiência estava acima do juiz justamente para sublinhar que a misericórdia está acima da justiça, numa lição universal que reflete-se como verdade atinente a todas as religiões, pelo que o digo sem perder nem um pouco o orgulho de ser judeu.

Não estou querendo com isto endossar as teses de Carl Schmitt sobre ser o chefe de Estado o “guardião da Constituição”, mas geralmente tal poder de graça é a ele concedido como um reconhecimento de que, nas horas de dissolução da justiça, alguém deve poder contemplar o Direito Natural, o que meu pai, Leib Soibelman, em sua obra, denominava como “Direito da crise contra a crise do Direito”.

Como pode o Poder Judiciário querer exercer controle sobre algo que existe justamente em contraposição à declaração do Direito por este mesmo poder em sua função prístina? Essa premissa universal básica somente pode se furtar às considerações de alguns causídicos devido a uma confusão mental, falta de articulação lógica adequada, etc. Logo, falar de controle jurisdicional da graça individual ou coletiva é já uma aberração, pisando-se sobre terreno epistemológico falso. Nem vale a pena manter uma discussão neste patamar de incompreensão dos termos. Recordo aqui a velha máxima de Aristóteles, ou seja, contra principia negantem non est disputandum, amiúde traduzido como “contra quem nega os princípios não pode haver debate”, sendo que prefiro a seguinte tradução: “não se discute com quem desconhece os princípios”. Nem deveríamos, portanto, discutir com juristas que se conduzem em primeira mão errando nos pressupostos, como Rosa Weber, Alexandre de Moraes etc., ao exigirem explicações de Bolsonaro quando a graça escapa, por sua própria natureza, ao objeto do Direito, assim como o direito natural é insuscetível, sob pena de contradictio in terminis, de ser normatizado.

Logo, já palmilhamos parte do problema, pois temos já claro, aqui, que a graça, em toda a sua evolução ao longo dos séculos, é universalmente definida como perdão da pena dimanado de uma circunstância holística de justiça que está oposta ao decreto jurisdicional, caracterizando-se por ser extinção de punibilidade decretada por outro poder que não o Judiciário.

Atendendo ao primeiro item da definição de conhecimento científico acima esposada, temos como saber universal sobre o objeto “graça”, podemos ver que está embutida nesta premissa universal o segundo item, a saber, a necessidade, a conclusão que não pode ser outra, expressada no fato de que, dada esta definição, torna-se impossível e improcedente o controle jurisdicional do que não existe como direito.

Preenchemos, portanto, os dois primeiros quesitos do conhecimento científico sobre a graça: 1. Universalmente, é extinção de punibilidade emanada doutro poder, que não o Judiciário; 2. sendo extinta por decreto emanado de outro poder que não o Judiciário, é necessário que o Poder Judiciário não possa ter qualquer ingerência nele.

O terceiro elemento, a saber, ser causal, é ter o potencial de produzir um efeito. Por isso dissemos a princípio que, do mesmo modo que no mundo natural a causa é um fato que produz um efeito, no Direito temos que ao fato x deve corresponder um efeito jurídico, e neste caso a graça é um fato extrajurídico com efeitos no mundo jurídico, de modo que sua concessão causa a extinção de punibilidade, comutação de pena etc.

Não obstante, muito embora, pelas razões já expendidas, constitua uma aporia pretender o exame jurisdicional da graça, há alguns argumentos inválidos (e, portanto, tergiversatórios) que pretendem imiscuir por outra via a apreciação jurisdicional no âmbito da graça, contornando esta questão essencial para atingir supostos pressupostos, que não passam de investida artificiosa: 1. pretender que a existência de crimes elencados no inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição que são expressamente insuscetíveis de graça – hipótese em que, ocorrendo, o Poder Judiciário estará autorizado a revogá-la – torne, por extensão, toda graça passível de exame por este poder, contrariando os linhamentos graníticos que acima expus; 2. pretender que a graça seja norma de eficácia contida, podendo ser restringida pela lei; 3. pretender que a graça se submeta ao princípio da impessoalidade do agente público e exista desvio de finalidade no caso da sua concessão a Daniel Silveira; 4. pretender que a graça só possa ser concedida após o trânsito em julgado; e 5. pretender que os direitos políticos seguem suspensos mesmo após o indulto. A seguir demolimos todas essas erronias do leguleio.

Quanto ao item 1 (a pretensão de que a existência de crimes elencados no inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição que são expressamente insuscetíveis de graça – hipótese em que, ocorrendo, o Poder Judiciário estará autorizado a revogá-la – torne, por extensão, toda graça passível de exame por este poder), o inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

Entenda-se simplesmente que onde o constituinte limitou taxativamente a vedação à concessão da graça, limitou também taxativamente a incidência do controle judicial, dado que este não se exercerá sobre o mérito da graça, mas sobre os pressupostos que a bloqueiam antes de qualquer mérito. Com isto colocamos uma pá de cal nesta inconsistente pretensão, conservando intacta a espinha dorsal de nossos argumentos. O referido inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição concentra um rol taxativo, um numerus clausus, não podendo o Judiciário inovar onde o constituinte quis excepcionar, limitando-se a restrição a estes específicos casos. É consabida a regra hermenêutica de que normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente (exceptiones sunt strictissimoe interpretationis).

Quanto ao item 2 (a pretensão de que a graça seja norma de eficácia contida, podendo ser restringida pela lei), no inciso XII do artigo 84 não há menção alguma a lei que possa vir a restringi-lo: “Compete privativamente ao presidente da República: (...) XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”. Pretender atrair para o limbo infraconstitucional o que adquiriu espectro muito mais amplo no campo das liberdades é violar a Constituição. Logo, invocar as predefinições do instituto em leis anteriores à Constituição, ou mesmo posteriores, será uma adaptação furtiva configurando a falácia do leito de Procusto, padecendo, portanto, de inconstitucionalidade material ostensiva. Tanto o legislador como o julgador e o hermeneuta mais abalizado não podem limitar a eficácia constitucional sem que esteja previamente expressa na Constituição esta previsão.

José Afonso da Silva, em Aplicabilidade das Normas Constitucionais, enumera, entre as características das normas de eficácia contida, a necessária menção expressa à lei que poderá restringi-las: “I – São normas que, em regra, solicitam a intervenção do legislador ordinário, fazendo expressa remissão a uma legislação futura (...)”. Não é o caso da graça tal como regida pela Constituição no inciso XII do artigo 84, na qual não há nenhuma remissão a lei futura, sendo puro extravio exegético trazer à baila qualquer outra lei onde se regre o instituto para com ela querer limitá-lo. Este amplo alcance da competência privativa do presidente torna não recepcionada pela Constituição qualquer norma anterior limitadora, e inconstitucional qualquer lei posterior que venha a fazê-lo.

O item 3 (a pretensão de que a graça se submeta ao princípio da impessoalidade do agente público e exista desvio de finalidade no caso da sua concessão a Daniel Silveira) é a maior das bobagens sonsas que estão inúmeros juristas propalando. O princípio da impessoalidade da administração pública está consignado no caput do artigo 37, caracterizando o agir em nome do Estado objetivando o bem comum, consubstanciando a obrigatoriedade do agente público de não se orientar por motivos que favoreçam quem quer que seja em detrimento de outrem ou do interesse público, os quais são, por sinal, a finalidade mesma da atividade administrativa. Quando se atua com a aparência de um ato regrado pela legalidade e impessoalidade, mas contendo finalidade diversa, este é chamado de “desvio de poder”, ou “desvio de finalidade”. No caso, o ato administrativo aparenta ter um motivo justo e ocorrer estritamente dentro da lei quando sua finalidade é diversa, como, por exemplo, a transferência de um funcionário público alegando-se a necessidade maior dele noutro setor quando, na verdade, a transferência se dá por motivo de vingança.

Qual é o problema da graça vista sob este aspecto? Ora, é que a graça não é ato de gestão, mas sim ato político, ato de Estado ou de governo, não se inserindo entre aqueles típicos da administração pública, logo, escapando completamente das balizas constitucionais do ato administrativo. Os atos de gestão, ou propriamente atos administrativos, são aqueles que versam sobre a estrutura de funcionamento do Estado, seus órgãos, repartições, gerenciamento de bens públicos etc. Já os atos políticos são aqueles que se relacionam com estratégias ideológicas, tensões políticas internas e externas, as relações diplomáticas e bélicas com outras nações, a relação entre os poderes do Estado, a convocação do Congresso, a nomeação de ministros, expulsão de estrangeiros e, finalmente, entre estes, a concessão de graça.

A eleição de um presidente é uma escolha ideológica e a linha que ele imprime, como governante, é conforme tal ideologia assim aplicada por ele à consecução dos objetivos fundamentais da República, constantes na Constituição, determinados no seu artigo 3.º: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Não são poucas as pessoas que, por despreparo, pensam que um presidente é um mero gestor, quando ele é, sobretudo, como susodito, o condutor de uma linha ideológica. É incrível como até mesmo entre juristas de escol encontramos este erro primário.

A graça concedida a Daniel Silveira se encontra sob a égide da tensão política das liberdades pela qual gerou-se a reação contra a exorbitância de um poder ao invadir a esfera de outro, provocando desequilíbrio. O Estado, mediante seu supremo mandatário, defendeu um direito constitucional (previsto no artigo 53) contra a sua violação por aquele que deveria ser o guardião da Constituição, tornando-se a suprema corte, deformadamente, a longa manus da agenda totalitária vermelha, violando o princípio da imparcialidade do juiz assegurado no Pacto de São José da Costa Rica (item 1.º do artigo 8.º, incorporado à nossa Constituição como direito fundamental por força do parágrafo 2.º do artigo 5.º), em clara perseguição que atinge diretamente o corpo de apoiadores do presidente, não sendo mais possível disfarçar esta finalidade inconfessa.

A peça acusatória do processo contra Daniel Silveira é de uma pobreza intelectual ímpar, não conseguindo formular sequer uma adequação da conduta aos tipos penais indicados. A mera expressão de um desejo do deputado de que um dia alguém jogasse um ministro numa lixeira foi capitulada como incitação, fugindo por completo ao núcleo do tipo do crime de incitação que é o verbo “incitar”, consistente na indução, instigação, estimulação, etc. Pior ainda foi o prefacio mambembe da acusação, querendo encontrar, para neutralizar a imunidade parlamentar, a ponderação desta com outros direitos e garantias constitucionalmente assentados, terminando por fazer ponto pacífico, após precário arrazoado, de que a ofensa pessoal a ministros seria um caso de igual violação constitucional – e mais, como se ofendê-los pessoalmente fosse colocar em risco a segurança e funcionamento dos poderes. Hilário.

Tudo isto foi medrado com uma artificialidade de causar vergonha para a comunidade jurídica de um país, que foi arrancada da seriedade para dentro do mais circense libelo que desabona o direito brasileiro, mostrando-se ainda a sua suprema corte permeada por uma promiscuidade política inaceitável no âmbito judicante. Seria trágico se não fosse ridículo.

Não importava, portanto, neste caso, o nome do deputado ou a opinião do mandatário sobre ele, ou ainda que fosse seu correligionário, muito embora pudesse, sim, fazê-lo, dado não ser ato administrativo, mas ato de governo no qual a escolha dirige-se a uma meta ideológica também. Não obstante o presidente honrou um dos princípios mais caros à liberdade, que foi a imunidade parlamentar, vilipendiada por uma cabala totalitária esquerdista, que tenciona estabelecer aqui o rito repressivo dos países onde a esquerda se instalou, fazendo da democracia um instrumento paradoxal de repressão à expressão de ideias e querendo recriar o delito de opinião sob o epíteto de “discurso de ódio”. Neste diapasão foram cunhadas acusações esquálidas de atos antidemocráticos e toda sorte de maquiagens de suas nefastas intenções que são, na verdade, todo o contrário da democracia, instrumentalizando uma corte suprema que se mostrou anestesiada por um espectro ideológico de esquerda habilmente disfarçado na linguagem do politicamente correto.

A individualização do benefício, permitida constitucionalmente, não incide, portanto, em violação da impessoalidade por ser ato de governo perpetrado por um presidente que foi eleito popularmente para viabilizar sua postura ideológica na condução dos objetivos da República, logo, podendo, sim, fazer escolhas. Não há um gabarito ideológico que possa servir de referência para que um ministro do STF possa restringir a graça e, se pudesse fazê-lo julgando a motivação como se fosse quesito de ato administrativo simples, estará, por esta verdadeira chicana doutrinária, convertendo-se definitivamente em tribunal de política partidária no lugar das alturas da política constitucional da qual deveria se ocupar.

O item 4 (a pretensão de que a graça só possa ser concedida após o trânsito em julgado) é bobagem propagada aos quatro ventos. Tratemos de dissipá-la. Entenda-se que a graça não é um instituto processual que tem por objeto, no conjunto de atos subsequentes que constituem um processo, uma fase processual específica. O objeto da graça é a extinção da punibilidade, sim, mas não adstrita a um momento processual porque o bem por ela dispensado contempla o agente expiatório, o expiador da pena, e não uma etapa da lei adjetiva, que é o processo judicial. Ela funciona semelhantemente a uma abolitio criminis no que diz respeito a ter eficácia imediata, dado não ser possível manter sob custódia alguém que antecipadamente já tem declarada a extinção da punibilidade por um poder que não o Judiciário.

Por fim, tratemos do item 5 (a pretensão de que os direitos políticos seguem suspensos mesmo após o indulto). A cassação dos direitos políticos é efeito da pena que é extinta pela graça. A Súmula 9 do TSE é bem clara quanto a que, extinta a pena, extingue-se a perda dos direitos políticos: “A suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos”. Há, no entanto, em sentido contrário, a Súmula 631 do STJ: “O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”. Ora, súmulas que constituem atentados à lógica (manter o acessório sem o pressuposto) e à Constituição devem ser prevalentes?

Esta súmula fere de morte não só a abrangência do indulto, que, repita-se, como exposto acima, não encontra restrições nem remissão à lei, para que fosse tida como de eficácia contida, como ainda o inciso VI combinado com o §2.º do artigo 55 da própria Constituição, que determinam que a decisão de perda do mandato caberá ao Senado ou à Câmara: “Perderá o mandato o deputado ou senador: (...) VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. (...) § 2.º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.

Ou seja, por via desta súmula o STJ imiscuiu-se em matéria natamente constitucional, contrariando literalmente a Constituição ao dotar de eficácia ultraconstitucional a parte dispositiva de decisões judiciais, bem como limitando o alcance da graça sem que tal limitação exista no inciso XII do artigo 84 e tampouco havendo remissão expressa à lei reguladora. Trata-se de uma “supersúmula míope”, abusiva e teratológica, na medida em que àquele que se concede o mais veda-se o menos, ou seja, o presidente poderia agraciar o apenado com a extinção do principal, que é a pena, com as restrições à liberdade, mas não poderia, neste agraciamento, contemplar os efeitos secundários.

Estamos aqui perante um interessante caso em que, extinto o pressuposto e principal elemento sancionatório, que é a pena, pretende-se que o acessório ganhe vida própria, analogamente a um membro do corpo que siga enervado, como sói ocorrer com parte do corpo de certos répteis, quando cortados. É a incursão do famoso gato de Erwin Schrödinger nos tribunais superiores. Neste experimento mental, diante da impossibilidade de estabelecer estados para saber se um gato está vivo ou morto numa caixa preta com radiação, trata-se o gato como vivo e morto, suprimindo-se o princípio lógico da não contradicão. Assim é que, para os tribunais, existe possibilidade de haver pena secundária, acessória, sem ter pena principal, haver pena sem pena. Devemos chamar a pena sem pena de jabuticaba quântica brasileira? De qual caixa preta de razões retirou o STJ autorização para essa aberração pretoriana?

Veja-se que a liberdade é direito de primeira geração, de forma que os direitos políticos, muito embora sejam colocados na mesma categoria, não podem estar em paridade com a liberdade. O impedimento de ocupar cargo eletivo nunca se comparará, em termos aflitivos penais, com o impedimento de ir e vir, trancafiando-se o agente numa masmorra moderna. A única justificativa seria, num giro coletivista, que os direitos e garantias individuais fossem secundarizados, encimando-se a eles a perspectiva social consubstanciada pelo intento de se impedir que o agraciado represente parte da sociedade nas casas legislativas, mas esta posição trai a própria democracia como regime no qual o povo elege seus representantes ao subtrair da escolha popular a legitimação. O que prevalece é a ilimitação do inciso XII do artigo 84, não tendo o legislador como seccionar esta abrangência e criar artificialmente a autonomia de efeitos da pena extinta por graça, tratando tais efeitos como se fossem um corpo estranho e destacado sob o biombo de um nada jurídico.

Creio ter destroçado, aqui, as principais objeções à graça concedida a Daniel Silveira, que amiúde são tecidas de forma completamente mercenária por caudatários do STF e da esquerda.

Felix Soibelman é atualizador da “Enciclopédia Jurídica Soibelman” e foi advogado no processo que originou a Súmula Vinculante 57 (RE 330.817). 

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]