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A Corte dos seus próprios juízes

Gilmar Mendes transforma toga em palanque ao insinuar candidato ao STF. A postura fere a Constituição e agrava a crise de confiança na Corte. (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)

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Não é a primeira vez que o ministro Gilmar Mendes confunde a liturgia do cargo com o estilo solto de um comentarista. Ao dizer, segundo Mônica Bergamo, que o senador Rodrigo Pacheco é “o nosso candidato” para o STF — e ao insinuar que outros ministros partilham da preferência —, o decano parece esquecer que a Constituição de 1988 não o incluiu no rol de quem indica.

Essa adesão, revelada em tom de bastidor, segundo a jornalista Mônica Bergamo, reforça a imagem de uma Corte que se fecha sobre si mesma. Ao vestir a toga com uma mão e empunhar o palanque com a outra, o ministro contribui para corroer a já frágil percepção de independência do tribunal. Fragilidade esta que, segundo pesquisa Atlas/Bloomberg de agosto de 2025, se traduz em uma confiança muito baixa da população no STF: apenas 21% declararam confiar ou confiar muito, enquanto 77% afirmaram confiar pouco ou nada.

A hiperexposição política dos últimos anos agrava esse cenário: gestos como o do ministro não são lapsos de liturgia, mas combustível para um desgaste institucional profundo. Tal erosão de confiança é sintoma de um processo que se agravou substancialmente nos últimos anos.

Embora não se trate de fenômeno inédito, o Supremo tem aderido de forma cada vez mais ostensiva a uma lógica autorreferente, própria de estamentos fechados. Essa dinâmica, no entanto, não é fruto de uma tradição contínua, mas de um desvio recente — que marca um distanciamento progressivo do papel contramajoritário que a Corte deveria exercer.

Como analisou Raymundo Faoro, o Estado patrimonial brasileiro historicamente operou por acomodações internas, sem rupturas estruturais profundas, substituindo o critério da impessoalidade por vínculos de casta e saber técnico monopolizado.

A inserção cada vez mais explícita do Judiciário — e particularmente do Supremo — nessa lógica não é resquício passivo, mas adesão voluntária. A toga, nesse cenário, vai se tornando menos símbolo jurídico que emblema de poder interno; o saber jurídico, por sua vez, é transmutado em privilégio institucional.

A Constituição, assim, cede lugar a uma liturgia de prestígio — funcionando, como diria Faoro, mais como adorno do que como limite.

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Quando um ministro se permite insinuar influência sobre a sucessão da Corte, dá um passo além dos limites silenciosos que sustentam a legitimidade republicana. A toga, que deveria simbolizar a submissão do intérprete à norma, passa a se vestir como manto de influência política. Isso não é mera opinião pessoal: é o deslocamento da Constituição do seu lugar de norma superior para o de enfeite retórico, moldado conforme conveniências de ocasião.

Se “o STF é jogo para adultos”, como disse o próprio ministro, convém lembrar que todo jogo sério tem regras — e uma delas, elementar, é que juiz não escolhe juiz. Quando a toga se converte em púlpito eleitoral, não se fere apenas a liturgia: reescreve-se, na prática, uma Constituição que não lhes deu esse papel.

Pela Constituição de 1988, a indicação de ministros do Supremo Tribunal Federal é ato privativo do Presidente da República, com aprovação do Senado Federal (art. 101, caput, c/c art. 84, XIV). Não há qualquer atribuição formal para ministros do próprio STF participarem oficialmente do processo — seja sugerindo, seja patrocinando nomes.

O problema da fala do ministro, portanto, não é apenas de etiqueta institucional; é de fidelidade constitucional. Uma República que se pretende governada por leis e não por homens não pode tolerar que intérpretes da Constituição passem a atuar como chanceladores de nomeações.

O ato de indicar ministros para o STF é prerrogativa constitucionalmente delimitada: pertence ao Executivo, sujeito ao crivo do Legislativo. Essa estrutura não apenas organiza competências, mas protege a liberdade política dos governados contra a formação de oligarquias institucionais. Como advertiu Madison, “as facções são como fogo: precisam ser contidas por um governo capaz de controlá-las sem se submeter a elas” (Federalista nº 10).

É justamente a arquitetura da separação de poderes que impede que a vontade particular de um grupo se sobreponha ao bem comum. Por isso, é nesse equilíbrio — e não na circulação de preferências pessoais entre togados — que se ancora a legitimidade das escolhas.

No constitucionalismo republicano, toda intervenção indevida na esfera democrática — como a tentativa de condicionar nomeações — inverte a presunção de liberdade, convertendo exceção em regra, e a influência pessoal em norma tácita.

Ao insinuar sua capacidade de influir na composição futura da Corte, o ministro reafirma um desvio institucional reiterado: a prática de usar o prestígio do cargo como instrumento para direcionar a arena política

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Não se trata apenas de uma conduta pessoal, mas de um sintoma de algo mais grave — a consolidação de um tipo de poder estranho à forma republicana, instalado no próprio coração do Estado, que opera sob a aparência de legalidade enquanto se afasta de seus fundamentos.

Esse tipo de gesto não é isolado, nem meramente pessoal — insere-se em um padrão mais profundo, que traduz o traço talvez mais recorrente do constitucionalismo brasileiro: sua vocação para o espetáculo das formas.

No constitucionalismo republicano, o exercício do poder deve ser tão comedido quanto é limitado. A autoridade do juiz nasce da sua abstenção política e de sua lealdade à função que lhe foi confiada, não da tentação de participar do enredo político.

Como observa Randy Barnett, a função do Judiciário é aplicar a Constituição segundo seu significado público original — e não moldá-la conforme os interesses ou conveniências institucionais dos próprios intérpretes.

Quando ministros atuam como articuladores da sucessão dentro da Corte, rompem esse limite: deixam de ser aplicadores da norma para se converterem em agentes da sua distorção estratégica.

E é justamente aí que entra o ponto decisivo: o que está em jogo não é apenas a eventual vaga de um ministro, mas a integridade de um arranjo institucional pensado para impedir que o próprio Supremo se torne juiz de si mesmo.

A Constituição existe, antes de tudo, para governar aqueles que nos governam — porque, numa república, os governados não são abstrações coletivas, mas indivíduos soberanos, cujos direitos antecedem e limitam o poder. Por isso, a tentativa de ministros influenciarem diretamente a composição da Corte é uma afronta ao próprio fundamento do poder constituído.

Quando ministros passam a disputar, sugerir ou “apadrinhar” sucessores, o STF se aproxima perigosamente do modelo que a Carta de 1988 buscou evitar: o de uma corporação autossuficiente, impermeável ao controle externo e cada vez mais distante do ideal republicano.

O desenho constitucional que entrega ao Presidente da República a prerrogativa de indicar ministros para o Supremo não é fruto do acaso ou de tradição protocolar: é expressão direta do princípio democrático.

O presidente foi eleito pela soberania popular e, ao exercer essa competência, projeta sobre a Corte um reflexo dessa legitimidade originária. E mais: a exigência de aprovação pelo Senado reforça o mesmo fundamento, ao submeter o indicado ao crivo de representantes igualmente escolhidos pelo povo.

Isso garante que a composição da Corte não seja definida exclusivamente por afinidades internas, mas por um processo público de escrutínio, que deveria ser blindado contra círculos fechados de poder.

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O Senado, nesse arranjo, precisaria funcionar como barreira deliberativa contra a autorreferência institucional do Supremo, em vez de simplesmente carimbar a escolha presidencial.

O problema é que, na prática brasileira recente, essa engrenagem nem sempre tem operado como previsto. Foi pensada para impedir que o tribunal se feche sobre si mesmo, escolhendo seus próprios integrantes ou permitindo que uma elite togada determine, nos bastidores, a composição da Corte.

É a participação popular — ainda que mediada por representantes eleitos — que assegura que o STF não se torne um poder autorreferente, blindado contra a renovação e impermeável à vontade geral. É também o que permite, democraticamente, oxigenar a Corte, trazendo a ela novas vozes, novas experiências e novas perspectivas, em vez de perpetuar um círculo restrito de influências internas.

A toga, no ideal republicano, deveria ser mais do que um ornamento de autoridade: é o instrumento destinado a proteger os indivíduos contra violações de direitos fundamentais, inclusive quando perpetradas pela própria democracia. É o limite colocado à vontade das maiorias, o contrapeso que impede que o poder — mesmo legitimado pelo voto — ultrapasse as fronteiras da liberdade.

No Brasil, porém, a toga nunca se firmou nesse papel. Historicamente, ergueu-se como mediação simbólica do poder estamental, substituindo o mandato popular por um saber técnico monopolizado por uma elite.

Não se trata, aqui, de juízes que ocasionalmente se desviam de sua missão, mas de uma forma persistente de dominação que, sob a aparência jurídica, reconfigura o político como privilégio técnico e influência de casta.

Por isso, quando um ministro se pronuncia publicamente sobre quem deveria ocupar a vaga, rompe-se essa cadeia de legitimidade democrática. A escolha deixa de ser o resultado de um processo institucional com dois filtros eletivos e passa a ser contaminada pela influência de quem deveria manter-se equidistante, julgando, não nomeando.

O STF não precisa de padrinhos; precisa de juízes. E uma República digna desse nome não pode tolerar que os guardiões da Constituição se tornem seus intérpretes mais infiéis — nem que a toga, outrora escudo da liberdade, seja usada como avalista de uma aristocracia togada.

Entre o ornamento e o limite, resta ao país escolher o que deseja da sua mais alta Corte. E essa escolha passa, necessariamente, pelas urnas: nas próximas eleições presidenciais, é crucial que o debate inclua não apenas programas de governo, mas o perfil daqueles que poderão ser indicados ao Supremo.

O mesmo vale para o Senado, que não pode se comportar como cartório de homologações. Deve ter a coragem de negar nomes quando entender prudente, em nome da Constituição — e, sobretudo, em respeito à vontade do povo. Porque, se os juízes não forem escolhidos com seriedade, o julgamento recairá sobre toda a República.

Leonardo Corrêa é advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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