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Obra “Ecce Homo”, de Antonio Ciseri (1871) retrata Jesus diante de Pilatos.
Obra “Ecce Homo”, de Antonio Ciseri (1871) retrata Jesus diante de Pilatos.| Foto: Reprodução

Em vários momentos a história foi mais pautada pelos efeitos das omissões e das traições dos “bons” do pelas ações diretas dos maus. Se é verdade que a terceira lei de Newton se aplica à história, aí está o fundamento dessa afirmação, pois assim como em física, a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade em sentido oposto. Modulando apenas o substantivo intensidade, podemos afirmar que a todo movimento político-social corresponde uma reação em sentido oposto, variando apenas de intensidade.

Por outro lado, se os fatos sociais permitem a identificação de uma consciência coletiva, esta não se move de forma ordenada sem unidade, mormente em momentos de tensão social, particularmente no caso de ações externas diretas que ameaçam desagregá-la. Estamos, portanto, falando de lideranças ou da falta delas.

A descendência de Pilatos tem alguns pontos em comum: tinha o poder e muitas vezes o dever de evitar o mal ou ao menos o pior; suas omissões tiveram consequências tremendas, abrangentes e duradouras

Nesse contexto, a descendência de Pilatos sempre esteve presente na história. Por um simples gesto de mão, Pilatos poderia ter evitado que Cristo fosse crucificado. Ele sabia muito bem que Barrabás era um facínora e que Jesus era um justo, tanto que afirmou ao público que não via nele qualquer culpa, mas, mesmo assim, soltou o criminoso e manteve preso o justo. Por essa simples omissão, pequena no movimento mas enorme nas consequências, o seu nome é execrado para todo o sempre no Credo católico.

Via de regra, moveram Pilatos e sua descendência interesses pessoais, carreira, posição, prestígio, medo, fraqueza, orgulho, egoísmo, alheamento ou mesmo culposa falta de visão. Estavam tão focados no individual que o coletivo para eles não passava de uma abstração ou de um incômodo contra o qual não valia a pena lutar. Luta mesmo, só contra a consciência, a qual, como a história, também não perdoa.

Preferiram vestir o pijama da tranquilidade pessoal de uma confortável aposentadoria do que o uniforme da luta pelo restabelecimento da ordem ameaçada pelo inimigo. Eles nunca estiveram à altura da grandeza que o momento histórico lhes reservava. Achavam pesado demais o script que lhes era apresentado. No caso de Pilatos, ele receava perder o cargo pelo medo das ameaças do populacho de levar o caso a César.

No dia 30 de Janeiro de 1933, depois da falência da chamada Grande Coalizão que governava a Alemanha de Weimar desde as eleições de 1928 e de seguidas dissoluções do Parlamento pelo presidente do Reich, Marechal Paul von Hindenburg, persuadido pelo seu conselheiro próximo Franz von Papen e acreditando que o ascendente Partido Nazista era o único em condições de evitar o caos político, o envelhecido presidente, herói da I Grande Guerra, nomeou Adolf Hitler como chanceler (primeiro-ministro) na esperança de tê-lo sob controle.

A caneta que nomeou Hitler poderia ter nomeado outro, talvez o próprio von Papen. Hitler foi nomeado chanceler não em decorrência de uma vitória eleitoral, mas de um acordo constitucionalmente questionável entre um pequeno grupo de políticos conservadores alemães.Não foram interesses pessoais que levaram von Hindenburg a nomear Hitler, mas certamente uma culposa falta de visão do momento histórico e talvez um certo cansaço de tanta confusão, carreando aqueles atores políticos os seus apoios ao lobo vestido de pele de ovelha. O resto da história todo mundo conhece. O lobo logo se despiu da pele de ovelha, prendeu ou matou seus inimigos políticos e causou a maior catástrofe da humanidade.

Tiveram condições de agir, mas por orgulho, egoísmo, comodismo, medo, interesses pessoais, alheamento, ingenuidade, credulidade, despreparo, seja lá o que for, favoreceram o inimigo.   

Depois do seu fracassado ataque ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, Fidel Castro foi preso e posteriormente exilado no México. Teve a sua vida poupada pela intercessão do arcebispo de Santiago, Enrique Pérez Serantes. Condenado à prisão e anistiado, mais tarde, em 1956, com apoio de setores da Igreja Católica, Fidel retomou a sua luta a partir de Sierra Maestra contra o ditador Fulgêncio Batista, reunindo o seu grupo numa paróquia de Havana. Fazendo-se de católico e de terço no pescoço, maquiavelicamente conquistou a simpatia até do jornal americano The New York Times, cujo enviado a Cuba escreveu seguidos artigos laudatórios, angariando com isso a simpatia da opinião pública pelo “líder idealista que queria derrubar o ditador sanguinário e estabelecer a democracia em Cuba”.

Em 1º de Janeiro de 1959 Fidel Castro conquistou definitivamente o poder e o resto da história todo mundo também conhece. Como no caso de von Hindenburg, não foram interesses pessoais que levaram o arcebispo de Santiago de Cuba, a Igreja Católica e até mesmo o The New York Times a lhe darem apoio, mas uma culposa falta de discernimento e de vigilância pastoral, quiçá alimentada pelo comodismo de se obter uma paz a todo custo, bem como um colossal estrabismo acerca daquele momento histórico.

No limiar da II Guerra Mundial, em 29 de setembro de 1938, os líderes das três maiores potências européias, França, Inglaterra e Itália, no seguimento da chamada Política de Apaziguamento (ceder para não perder),se reuniram com Hitler para se discutir o futuro da Checoslováquia, tendo sido costurado o Acordo de Munique, que significou a capitulação da Europa perante a Alemanha de Hitler, entregando-lhe os Sudetos e o controle efetivo do resto daquele pobre país abandonado pela França e Inglaterra, apesar das alianças militares existentes entre os três, desde que Hitler prometesse que aquela seria a sua última reinvidicação territorial.

Triste e calamitosa ingenuidade e credulidade! Neville Chamberlain e Édouard Daladier, primeiros-ministros inglês e francês, respectivamente, retornaram a seus países como heróis, apesar de que na Checoslováquia aquele acordo passou a ser chamado de a “traição de Munique”. O resto da história todo mundo conhece. Hitler anexou o que sobrou da Checoslováquia e depois invadiu a Polônia e na sequência, o resto da Europa continental.

Do alto do seu respeitável ostracismo, Winston Churchill, velha raposa, cunhou a célebre frase que grudou nas costas dos dois políticos para sempre: tivestes a escolher entre a paz e a guerra, escolhestes a paz e tereis a guerra. Como sempre, a história não perdoou os omissos, os medrosos e os fracos.

Alexander Feodorovitch Kerensky iniciou sua carreira política na Rússia em 1912, elegendo-se membro da Duma, o Parlamento russo. Socialista e profundamente contrário ao regime imperial, participou da revolução de 1917, que resultou na abdicação do Czar Nicolau II. Em julho do mesmo ano tornou-se primeiro-ministro, com poderes ditatoriais. Como costuma acontecer à esquerda, as várias correntes que o partido tinham profundas divergências, sendo a mais poderosa a dos bolchevistas, lideradas por Lênin, mas que logo perdeu força, encontrando-se Lenin foragido e Trotsk e Stalin presos.

Kornilov o comandante-chefe das Forças Armadas russas, tido como de direita, apresentou então ao governo um enérgico plano para liquidar os bolchevistas. Kerensky, o socialista moderado, não gostava da posição ideológica dos bolchevistas, mas rejeitou a proposta de Kornilov e acabou por prendê-lo sob a acusação de querer dar um golpe de Estado, ao passo que libertou Trotsky e Stalin, vindo a proclamar a república. Note-se: prendeu o general anticomunista e libertou os mais temíveis líderes comunistas!

Lênin retornou à Rússia e os bolschevistas voltaram a crescer. Em novembro de 1917, depois de assassinarem toda a família imperial a fim de impedirem definitivamente a restauração do regime, derrubam o governo e assumiram o poder. Kornilov foge e assume o comando do exército russo-branco, que combatia a revolução, vindo a morrer no ano seguinte vitimado por uma bomba. Kerensky se refugia num navio inglês e consegue chegar são e salvo a Londres, vindo a se estabelecer confortavelmente mais tarde em Nova York, onde viveu uma velhice despreocupada no coração do mundo capitalista, enquanto o povo russo era escravizado pelos comunistas. Kerensky passou para a História como o homem que, negando-se a tomar atitudes enérgicas contra os bolchevistas, combateu a direita prendendo Kornilov, favoreceu Trotsky e Lênin, libertando-os, acabando sendo por eles derrubado. Kerensky sabia muito bem quem eram Lênin, Trotsky, Stalin e os bolchevistas, mas mesmo assim favoreceu-os.

Será que casos como esses são coisas do passado? No presente não estariam também ocorrendo? Cícero disse que a história é a mestra da vida. Edmund Burke disse que quem não conhece a sua história, está condenado a repeti-la. O mesmo Burke também disse que para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada. Portanto, pior do que os maus são os bons que lhe deram liberdade de agir.

A descendência de Pilatos tem alguns pontos em comum: tinha o poder e muitas vezes o dever de evitar o mal ou ao menos o pior; suas omissões tiveram consequências tremendas, abrangentes e duradouras ; via de regra, são decisões solitárias tomadas em momentos de alta pressão; porém, eles sempre estavam em posições e em condições de discernir o mal. Quem sofreu o peso das consequências das suas omissões e traições foi o povo e por causa disso são culpados. Tiveram condições de agir, mas por orgulho, egoísmo, comodismo, medo, interesses pessoais, alheamento, ingenuidade, credulidade, despreparo, seja lá o que for, favoreceram o inimigo.

Marco Antonio Machado é advogado.

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