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O que aconteceu com Saul Raiz – para cuja recuperação seus muitos amigos e admiradores, entre os quais me incluo, torcem e rezam – é emblemático de um fenômeno comum na sociedade moderna: a absoluta desumanização do cotidiano. Em praticamente todas as dimensões da vida humana, o indivíduo perdeu espaço para o coletivo; progressivamente, ele passou a ser rotulado e catalogado dentro de grupos numerosos: "pacientes do SUS", "alunos da rede pública", "usuários do sistema de transporte coletivo", "vítimas de crimes de violência"... E ele acaba sendo tratado como uma parte minúscula de um grande problema: o da saúde pública, da educação, do transporte coletivo, da segurança. Aquilo que Stalin teria dito – "uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística" – terá acontecido: o antigo indivíduo deixou de ser o sujeito das tragédias humanas para se transformar em um ponto qualquer das estatísticas.

Dirá alguém que isso é inevitável nas sociedades cada vez mais numerosas, onde a atenção pessoal é incompatível com as exigências de massa, mas acredito que devemos ser seletivos na aceitação resignada desse fato. Acho ótimo que minha interação humana com outros clientes de bancos tenha sido drasticamente reduzida pela possibilidade de fazer quase tudo via internet. Também me agrada muitíssimo a automatização de algumas tarefas burocráticas, como obter uma certidão negativa, uma informação da Receita ou uma guia para pagamento de tributos. Nesses casos, a "desumanização" desses serviços melhorou a minha qualidade de vida, pois ficar em uma fila esperando não enriquece o espírito de ninguém.

Mas transponha esse mecanicismo para outras coisas e você terá um desastre. Que tal tentar acessar rapidamente um serviço de emergência e descobrir que ninguém atende o chamado? Ou corrigir um erro em uma conta telefônica? Ou reclamar a alguém pelo mau serviço que recebeu? Muitas empresas se recusam a colocar o queixoso em contato direto com supervisores que possam realmente solucionar o problema levantado e para o qual o atendente de um call-center situado em algum lugar do mundo não tem resposta. Outras não fornecem sequer um telefone de contato, limitando-se ao asséptico formulário de uma mensagem de e-mail, que certamente motivará uma resposta burocrática, acusando o recebimento e prometendo contato no futuro. Futuro esse que nunca chegará.

Quando essas coisas transbordam para assuntos de vida e de morte, o problema da desumanização é crucial. E foi o que aconteceu com Saul. No estacionamento de um hospital, que deveria estar repleto de profissionais de saúde e de equipamentos especializados em salvar vidas, de pessoas e máquinas capazes de evitar a morte de alguém que chegou ao local sangrando abundantemente, ele é tratado com descaso burocrático, como uma perturbação do funcionamento da organização, alguém que está fora dos parâmetros rotineiros da instituição. O ser humano, o indivíduo Saul, não foi visto como merecedor da atenção individual, imediata e inadiável, mas como uma ocorrência estatística qualquer.

Não foi para agir assim que o bom Deus agraciou o homem com a razão, aquela capacidade singular de distinguir o bem do mal, o certo do errado e o verdadeiro do falso.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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