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Viver agradecendo deveria ser uma atitude habitual, uma disposição de vida e um modo de nos situarmos na existência

Um ano está terminando, outro está por começar, e nestas épocas festivas é comum aproveitar algum momento de mais tranquilidade para refletir na própria vida. Algumas questões costumam emergir: Afinal, estou indo bem? E para onde estou indo? E minha família: está indo realmente bem? O que me (nos) falta?

Como professor universitário, tenho o hábito de promover esta reflexão em sala de aula no último mês do ano. A metodologia utilizada é a discussão de dois clássicos do cinema, os quais recomendo a todos. São eles: Deste mundo nada se leva e Felicidade não se compra. Os filmes são dirigidos por um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos: Frank Capra. Pablo G. Blasco, um dos renomados comentaristas desta sétima arte, salienta em um dos seus livros: "O cinema de Capra transborda bondade. É uma apologia do poder transformador que encerra o carinho humano. Sua crítica à hipocrisia, à corrupção, enfim, a todo o espectro da maldade humana, é por isso peculiar, construtiva, crítica sem violência, direta, franca, discretamente ingênua. São apelos ao coração, tentativas de desentocar os bons sentimentos, sempre presentes no interior do homem, mesmo submerso em falsidade e calejado no ódio".

É isso que tento realizar com os meus alunos no final de cada ano: em vez de dizer-lhes que deveriam ter alcançado melhores resultados acadêmicos, que deveriam ter crescido muito mais eticamente, que poderiam ter galgado patamares mais elevados de solidariedade e justiça. Tento desentocar neles sentimentos de agradecimento e retribuição por tudo o que receberam dos pais, dos professores, dos funcionários, dos colegas e, evidentemente, de Deus, ao longo do ano. Esse exercício do coração é uma das formas mais eficientes de despertar as pessoas para a realidade da condição humana de meras criaturas frágeis e dependentes dos demais. De encaminhá-las para os verdadeiros valores humanos.

Viver agradecendo deveria ser uma atitude habitual, uma disposição de vida e um modo de nos situarmos na existência. Quando os alunos passarem a sentir-se efetivamente agraciados por uns bons pais (ou avós) que lhes deram todo o suporte para crescerem rumo à excelência humana, quando reconhecem os esforços de quase todos os professores em viver uma entrega diária para a sua formação integral ou dos funcionários da escola para que lhes mantenham limpos a sala de aula e o pátio, ou ainda quando (re)descobrem uma amizade real dos amigos, tenderão a despertar algumas fibras adormecidas do coração. E é dessa conscientização que nascerá a gratidão habitual. Por isso, quanto mais incentivamos o agradecimento, mais fomentaremos desejos de fazer algo pelos outros. Essa é a dinâmica verdadeira da felicidade. O núcleo sólido da nossa personalidade, o fundo de segurança íntima de que todos precisamos, consiste nessa dupla certeza: a de sermos amados e a de podermos amar.

Quando formamos nossos alunos na ética da gratidão, estaremos também ajudando-os a crescer em humildade, virtude fundamental que falta hoje em tantos âmbitos educacionais. Descobrirão que tudo o que receberam é dom imerecido – família, talentos, capacidades, saúde, amigos, dinheiro, conhecimento, virtudes – e aprenderão a não se apropriar de méritos que muitas vezes não são deles.

Um último aspecto que tento ensinar aos meus alunos é que aprendam a agradecer o que não lhes agradou ao longo do ano: não terem conseguido passar com as notas que gostariam, não terem ganho o campeonato da escola, não terem ido naquela viagem um pouco mais cara, o namoro que acabou, os amigos que perderam, a saúde que fraquejou.

Quando aprendem desde cedo a sentir-se criaturas de Deus e não "pequenos deuses", essa tarefa costuma ser muito mais fácil, pois intuem facilmente que Alguém lá em cima quis tudo isso para o bem deles, mesmo que nos custe entender por quê. Porém quando não são bem formados nesse aspecto, em geral por deficiências da educação familiar, costumam se sentir vítimas e sofrer muito. Infelizmente, essa é uma das chagas do materialismo atual: querer que a vida corra sempre conforme nossos sonhos e desejos, como autênticos "criadores". As ações de graças nesses momentos serão sempre o melhor antídoto para aceitar as humilhações e viver uma vida mais real, mais cômica (rir de si mesmo) e muito mais rica do que aquela com a qual costumamos sonhar.

João Malheiro é doutor em Educação pela UFRJ. E-mail malheiro.com@gmail.com Blog escoladesagres.org

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