| Foto: Jair Bolsonaro/Redes Sociais/Direitos Reservados

Todo governante, em início de governo, se esforça para assoprar o balão de sua identidade. Esta, por sua vez, compreende duas dimensões: uma de natureza semântica, abrangendo o pensamento do governante, manifesto em falas improvisadas ou formais, entrevistas coletivas ou individuais, respostas isoladas às provocações da mídia etc; a segunda dimensão é de cunho estético, abrigando o discurso não verbal, e sim os gestos, as maneiras de se comportar, o modo de se apresentar no cotidiano. O governante, como celebridade, tem obrigação de cumprir uma liturgia do poder.

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A liturgia do poder faz parte do Estado-espetáculo, se fez muito presente no passado e é o imã que costuma fazer a conexão entre governante e governados.

Luis XIV se vestia como um pavão, desfilava em seu cavalo coberto de diamantes nos arredores do Palácio de Versailles; Hitler, sob orientação de Goebbels, estufava o peito, deixava a cabeleira cair sobra a testa, usava os braços para imprimir força às palavras; Kennedy se ancorava no sorriso aberto e na cabeleira farta; Juscelino Kubitschek era a simpatia do grande sorriso; Jânio, olhos esbugalhados, paletó amarfanhado, ganhava aplausos das galeras; Collor fazia cooper diariamente com um cordão de jornalistas correndo atrás; Sarney usava a liturgia de modo solene; FHC se esforçava para fazer aparecer seu lado schollar; Lula, voz rouquenha, metáforas futebolísticas, linguagem rudimentar, desfilava de um canto a outro no palanque, ganhando vivas da massa.

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No campo semântico, a linguagem simples do capitão, com frases incompletas, onomatopeias, certos cacoetes, o aproximam do homem comum

Já o presidente eleito Jair Bolsonaro está tirando notas boas em seu vestibular na área da liturgia. Fazer flexões na frente de um grupo de militares, que se exercitavam, mostra a feição militar que o capitão tem procurado reforçar a todo o momento. O que impressiona é fazer 10 flexões portando uma bolsa de colostomia. Como é que aguenta? É a pergunta que muitos se fizeram. O lado militar se apresenta também nas continências que Bolsonaro faz tanto para militares quanto para civis. Uma forma, segundo já se depreende, de homenagear o interlocutor e não de “beijar a mão”, como as más línguas querem interpretar.

A escolha de militares para integrar os quadros do governo, dentre os quais muitos generais, fecha a imagem do “soldado a serviço da Pátria”, como ele tenta passar em suas perorações.

No campo semântico, a linguagem simples do capitão, com frases incompletas, onomatopeias, certos cacoetes, o aproximam do homem comum. Assim como o gosto por leite condensado no pão do café da manhã. Ênfases ficam por conta de expressões em defesa da família e, em matéria de relações externas, do alinhamento incondicional com os Estados Unidos; o afastamento do Brasil de nações comprometidas com o ideário dos direitos humanos, compreendendo, entre outras coisas, o acolhimento sem restrições a imigrantes que vivem em estado de carências em seus países.

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A sinalização nessa direção, inclusive com a promessa do chanceler escolhido, Ernesto Araújo, de tirar o Brasil do Pacto Global de Migração, assinado por 164 países, pode nos deixar isolados da comunidade democrática universal. Mas a identidade conservadora nos costumes e nas relações internacionais vem sendo burilada com estridência.

No âmbito interno, a identidade do novo governo passa a ser bem acolhida por parcelas da sociedade, particularmente estratos mais à direita, engajados na luta contra o aborto, a ideologização do ensino escolar, a favor do armamento para proprietários rurais, contra invasões de propriedades. Nessa linha, prevê-se refluxo do MST, que usa como estratégia a ocupação de terras “para uso social”, conforme costuma alegar.

Outras vertentes da identidade do novo governo abarcam duas frentes: combate à corrupção e combate à violência. São duas demandas sociais de vulto e seguramente, se bem-sucedidas, darão tintura à imagem positiva do governo. O país tem se tornado um gigantesco faroeste. A criminalidade campeia sob ordens de chefes presos. E a corrupção ainda corre solta, apesar da contenção da lama pelos dutos da Operação Lava Jato.

Bolsonaro montou sua equipe de forma a preencher todos os vazios da identidade. Com a economia voltando a bombar, as flexões e as continências do capitão serão vistas com admiração e respeito.

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Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação.