| Foto: Yelim Lee/AFP

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, vem mostrando uma reação exemplar ao massacre de Christchurch, onde 50 muçulmanos foram mortos em duas mesquitas por um supremacista australiano e seus cúmplices.

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Arden deu o tom do luto nacional, consolando a comunidade imigrante muçulmana e insistindo, em um tuíte após o ataque: “Muitos dos que foram afetados são membros das nossas comunidades imigrantes; a Nova Zelândia é seu lar. Eles são parte de nós.” Além disso, classificou a tragédia como um ataque terrorista e deixou bem claro que seu país rejeitará o extremismo violento.

Ardern, de 38 anos, assumiu o cargo em outubro de 2017, depois de gerar uma onda de “Jacindamania” e liderar a vitória de seu partido, o Trabalhista. Sua condição de progressista séria não foi afetada por seu status de celebridade; ela lidera as pesquisas de opinião, ainda que algumas de suas decisões não se mostrem unânimes.

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Christchurch é um divisor de águas para Ardern e para a Nova Zelândia. E ela certamente definiu um nível bem alto, não só pelas mensagens, como pela liderança exibida durante a crise. Deve também divulgar propostas específicas para mudar a lei de posse de armas antes de 25 de março. Usando um véu de cabeça preto, consolou as famílias das vítimas – um gesto extraordinário, dadas as reações que a peça usada pelas muçulmanas provoca em tantos países ocidentais.

Os neozelandeses seguiram o exemplo de sua líder, com os cidadãos declarando que o atirador não fala por eles, fazendo um sem-fim de doações para as famílias das vítimas, assinando livros de pêsames, colocando flores na frente das mesquitas. Em 17 de março, as congregações religiosas cantaram o hino nacional neozelandês, que fala de “homens de todos os credos e raças” reunidos diante de Deus em uma “terra livre”.

Sua condição de progressista séria não foi afetada por seu status de celebridade

O tempo todo desde a tragédia, Ardern vem procurando conscientemente reforçar a ideologia pública e elevá-la acima do preconceito privado. Ela reconhece a política como o espaço em que se decidem os valores de uma nação e dirige uma narrativa forte para uma sociedade que, de uma hora para a outra, tem de lidar com seus problemas, repentinamente escancarados. Ela está lembrando à população que esta deve se ajustar à nova composição do país – e, de fato, disse a Donald Trump que o melhor apoio que poderia dar à Nova Zelândia seria oferecendo “empatia e carinho a todas as comunidades muçulmanas”.

Em 19 de março, em pronunciamento no Parlamento, ela disse às famílias em luto: “Não conhecemos sua dor, mas podemos estar ao seu lado ao longo do caminho.” E, com um gesto inédito, Ardern disse que jamais mencionará o nome do terrorista, negando-lhe assim a fama que ele tanto buscava. E implorou aos outros que pronunciassem os nomes das pessoas que foram mortas, e nunca o daquele que as matou.

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Ardern está se destacando como a antítese progressista definitiva em um cenário lotado de homens fortes de direita, como Trump, o húngaro Viktor Orban e o indiano Narendra Modi, cujas carreiras são calcadas em uma retórica iliberal e antimuçulmana.

Tão excepcional quanto sua primeira-ministra, a Nova Zelândia tem uma cultura nacional que não se iguala a nenhuma outra na Europa e nas Américas. Seu isolamento e distância tornam essa peculiaridade possível, e a diferença é palpável. O país é um espetáculo de beleza, com uma população de cinco milhões de habitantes em uma área pouco maior que a da Grã-Bretanha. Embora seja urbanizado, com uma economia desenvolvida e estável, tem um ritmo e uma previsão de vida que parecem desconexos com as exigências extrativistas da modernidade.

Migrantes de países em desenvolvimento rapidamente se identificam com os simpáticos kiwis (como os neozelandeses são conhecidos) e é inevitável se surpreenderem ao ver adultos e crianças caminhando pelas ruas descalços. Há bibliotecas públicas espetaculares e inúmeros espaços públicos na forma de praias, baías e parques. Os laços comunitários são cruciais, o equilíbrio entre o trabalho e a vida é importante e os fins de semana prolongados, sagrados.

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Agências públicas especializadas ajudam os imigrantes a se adaptar. As ruas são seguras, o estudo é gratuito e o custo das universidades, relativamente modesto. Os neozelandeses reclamam da falta de investimento do governo na assistência médica especializada, mas, para um estrangeiro, ela já é bem impressionante: um receituário completo de antibióticos custa US$ 3,43. A Nova Zelândia enfrenta pressões neoliberais, mas tenta se manter como democracia social.

É claro que também tem problemas – e sérios, como a falta de moradia, atribuída a uma valorização alta e repentina causada por investidores chineses ao longo dos anos; a indenização exigida pelas comunidades maori, por causa da expropriação histórica, que está sendo avaliada por um tribunal especial, e a promoção consciente da cultura indígena; a saúde mental é uma questão pouco abordada e a infraestrutura pública precisa de mais investimentos.

Cidades como Auckland cresceram rapidamente na última década, graças a milhares de estudantes e trabalhadores estrangeiros, o que fez aumentar a pressão sobre os serviços de uma maneira que os kiwis não esperavam. Na verdade, muitos ainda estão se acostumando à diversidade e lamentam o fato de “o país ter mudado”, o que gera algum ressentimento, que figuras da direita fazem questão de atiçar. Os muçulmanos são objeto de ofensas raciais e discurso de ódio desde o 11 de setembro, mas, como o jornalista local Mohamed Hassan diz, nunca de uma forma que “ameaçaria a vida de alguém”.

Apesar disso, há um debate político vibrante sobre imigração e a necessidade de importação de mão de obra especializada sem provocar tensões domésticas, mas tudo conduzido sem rancor ou desprezo. Os estrangeiros não negam sentir formas sutis de exclusão em relação à garantia de emprego e/ou às promoções, mas o compromisso inato com a civilidade diária entre os neozelandeses é algo que o imigrante nunca vai deixar de apreciar.

Ardern tem uma tarefa árdua pela frente para garantir que o “perfil” do país não mude. Os desafios que enfrenta são semelhantes aos de outras democracias. Porém, se nesse caso os hábitos normativos e a prática deliberativa prevalecerão sobre subculturas sórdidas de direita, amplificadas pela tecnologia, as redes sociais e armas, só o tempo dirá.

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Combater o preconceito e a intolerância implica a aplicação da lei e a mudança cultural; a primeira é mais fácil, a segunda, nem tanto. Ardern terá de usar a civilidade de seu país para enfrentar divisões sociais, em vez de permitir que alimente silêncios que venham a bloquear a expressão íntegra de igualdade para os grupos marginais.

Seu governo terá de criar novos significados de pertencimento nacional para transformar os tolerados e malquistos em desejados. No frigir dos ovos, o objetivo do discurso democrático deve ser o de aproximar os bolsões e fazer um paralelo entre as vidas culturais.

É um desafio muito arriscado para uma política liberal, já que a extrapolação dos limites da engenharia social pode provocar uma reação negativa por parte dos conservadores. Não é fácil lidar com uma comunidade em luto e uma nação cuja autoimagem sofreu um golpe violento, mas, no momento, sua claridade moral é modelo e inspiração para o mundo.

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Sushil Aaron é um jornalista indiano atualmente trabalhando na Nova Zelândia.
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