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A incrível fábrica brasileira de moradores de rua

População em situação de rua recebe comida na Sé, em São Paulo.
População de rua aumentou em 25% de 2023 para 2024. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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O fenômeno dos moradores de rua se espalhou por todo o Brasil. Mas ele não se apresenta de forma uniforme: é justamente nas regiões mais ricas, mais desenvolvidas e com maiores índices de empregabilidade que esse cenário se torna mais visível e alarmante. Essa realidade desmonta – ou melhor, desmascara – um dos mitos mais insistentes da esquerda contemporânea: a ideia de que os moradores de rua são produto da desigualdade social ou do capitalismo.

Se a tese fosse verdadeira, como explicar que, em um país historicamente marcado por pobreza e miséria, o fenômeno dos moradores de rua, tal qual o conhecemos hoje, seja recente? Ou como justificar que Florianópolis, cidade com a menor taxa de desemprego do Brasil, tenha registrado o maior crescimento proporcional de população em situação de rua entre as capitais brasileiras?

Ao remover qualquer consequência legal real para o consumo de entorpecentes, a lei abriu caminho para a explosão do número de dependentes químicos no Brasil. E com o aumento dos dependentes, aumentou também o número de pessoas vivendo nas ruas

A resposta está longe dos slogans fáceis. E ela começa no ano de 2006, durante o primeiro governo Lula, quando foi aprovada a chamada Nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Esta legislação, tida por muitos como “moderna” e “humanizada”, estabeleceu que o uso de drogas, mesmo que em espaços públicos, não seria mais punido com privação de liberdade. O artigo 28 da lei determinou que a punição ao usuário seria, na prática, uma advertência verbal. Isso mesmo: se alguém for flagrado fumando crack em uma praça, a pena prevista é um sermão.

O resultado dessa medida foi devastador. Ao remover qualquer consequência legal real para o consumo de entorpecentes, a lei abriu caminho para a explosão do número de dependentes químicos no Brasil. E com o aumento dos dependentes, aumentou também o número de pessoas vivendo nas ruas. Não é coincidência: é uma relação causal direta, que só não enxerga quem não quer.

Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil cresceu mais de 211% entre 2012 e 2022, saltando de 92 mil para 281 mil pessoas. Em 2024, outro levantamento da UFMG já apontava mais de 330 mil pessoas vivendo nas ruas do país. Ou seja, um crescimento contínuo e explosivo desde a mudança da lei.

As pesquisas que tentam mapear os motivos da situação de rua costumam ser autodeclaratórias – e, por isso, enganosas. Nelas, os entrevistados citam com frequência o desemprego ou a quebra dos laços familiares como causas principais. O uso de drogas geralmente aparece em terceiro lugar ou depois. Mas a realidade é mais complexa – e mais cruel.

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O desemprego relatado, quase sempre, é consequência do vício: o dependente começa a faltar ao trabalho, descumprir ordens, reduzir produtividade. Já os laços familiares são rompidos depois que o viciado começa a criar conflitos dentro de casa, roubar parentes ou tornar a convivência insustentável. Ou seja, o uso de drogas é o motor silencioso por trás das estatísticas.

Estudos mostram que cerca de 90% dos moradores de rua são dependentes químicos. Eles não se tornaram viciados após irem para a rua – foram para a rua porque já eram viciados. Dizer que isso é culpa da miséria ou da desigualdade social é ignorar a evidência. Florianópolis e Santa Catarina têm empregos sobrando. O que falta é gente apta a trabalhar – algo que o vício impede.

Como secretário de Assistência Social da capital catarinense, posso afirmar: os casos de pessoas em situação de rua por miséria absoluta são raríssimos. Infelizmente, pois são os mais fáceis de resolver. Oferece-se um emprego, uma oportunidade e pronto: o problema é resolvido. O difícil é ajudar quem não quer ajuda, não aceita emprego e não quer sair das ruas – porque está dominado pela dependência química.

O que as prefeituras podem fazer? Pouco. Podemos promover limpeza urbana, reordenamento de espaços públicos, ações de acolhimento e tratamento voluntário. Em Florianópolis, por exemplo, aumentamos em 1.200% as abordagens de rua em 2025. Estabelecemos critérios mais rígidos, retomamos a Força-Tarefa DOA – uma operação integrada entre diversos órgãos municipais que oferece abordagens humanizadas para pessoas em situação de rua, apresentando alternativas como acolhimento, tratamento, retorno à cidade de origem e, principalmente, oportunidades para reconstrução de vida com dignidade.

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A internação involuntária é virtualmente impossível no Brasil atual. “Mandar de volta para sua cidade de origem”? Só com consentimento do próprio indivíduo. Nossas ferramentas são indiretas – e limitadas. Sim, oferecemos internações voluntárias. Entretanto, são pouquíssimos os que aceitam. E, entre os que aceitam e são enviados para clínicas ou centros de tratamento, a maioria abandona o processo antes do fim. Dos poucos que concluem o ciclo de tratamento, a maioria volta para as drogas em poucos meses. Uma pesquisa publicada na Saúde em Debate revelou que, após um período de internação, 31% dos dependentes recaíram antes de completar um mês, 19% entre 2 e 4 meses, e 7% entre 5 e 8 meses. Apenas uma pequena parcela conseguiu manter a abstinência por mais de um ano.

Enquanto isso, o Congresso Nacional permanece inerte. E mesmo a direita tem medo de tocar nesse vespeiro. Alguns não querem perder votos de dependentes ou de “liberais” que confundem liberdade com autodestruição pública. Mas a esquerda, essa, nem esconde: defende abertamente o “direito de viver na rua” e a “liberdade” de usar drogas – como se liberdade fosse sinônimo de degradação.

A verdade é uma só: enquanto a Lei 11.343/06 continuar em vigor tal como está, teremos no Brasil uma verdadeira fábrica de moradores de rua funcionando a todo vapor. Não é a pobreza que leva as pessoas às calçadas – é a droga. E foi o Congresso Nacional, em 2006, que ligou essa máquina. As prefeituras seguirão fazendo sua parte. Mas as soluções – as verdadeiras – dependem de Brasília. E de coragem política.

Bruno Souza é secretário de Assistência Social de Florianópolis (SC).

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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