Dominique Strauss-Kahn (DSK), então diretor-gerente do FMI e potencial candidato social-democrata à Presidência da França, foi anulado numa noite fatídica de maio de 2011. O episódio de sua prisão em Nova York, sob a falsa acusação de ataque sexual contra uma camareira de hotel, tem as marcas de uma armadilha política, possivelmente urdida por agentes do serviço secreto francês a mando de Nicolas Sarkozy. Um texto curto publicado na internet por DSK, domingo passado, evidencia o quanto se perdeu com seu ostracismo. Nele, encontra-se um agudo diagnóstico sobre o desastre grego – e, ainda, a ousada sugestão de uma solução.

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A Grécia tem parte da culpa, mas a Europa não pode ocultar suas responsabilidades. A zona monetária do euro nasceu como edifício instável, carente de uma união fiscal e de regulação bancária comum. Por isso, escreve DSK, o FMI deveria preconizar um ajuste “mais simétrico” e “menos pró-cíclico”, o que significa uma divisão equilibrada de encargos entre a zona do euro e a Grécia. No catastrófico cenário atual, alerta, “nós precisamos de uma mudança de lógica”.

O impasse é político – eis a chave do raciocínio de DSK. As suas raízes repousam na contradição fundamental da zona do euro: a convivência de uma autoridade monetária supranacional (a moeda) com o princípio da soberania nacional (o voto). Nos tempos de calmaria, a tensão permaneceu submersa. Na hora da crise financeira, emergiu como uma borrasca. Os países endividados (a Grécia, antes de todos, mas também Portugal, Irlanda e Espanha) trocaram pacotes de resgate pela virtual cessão de suas políticas fiscais para a “troika” de credores (Eurogrupo, Banco Central Europeu e FMI). De lá para cá, nesses países, as eleições converteram-se em rituais vazios, destinados a selecionar o partido que aplica políticas de austeridade ditadas de fora.

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A zona monetária do euro nasceu como edifício instável, carente de uma união fiscal e de regulação bancária comum

Na Grécia, elo frágil, a “solução” chegou ao esgotamento. Depois de cinco anos de brutal recessão, o triunfo eleitoral do Syriza implodiu a lógica imperante. O governo esquerdista grego não pode se curvar às políticas impostas pelos credores sem trair seu mandato popular. Mas, do lado dos credores, especialmente a Alemanha, nenhum governo tem o direito de virar as costas a seus próprios eleitores, que não admitem mais concessões à Grécia.

Quando o jovem primeiro-ministro grego Alexis Tsipras saiu da sala, voou para Atenas e convocou um referendo para dizer “não” aos parceiros da zona do euro, Jean-Claude Juncker, o chefe da Comissão Europeia, colocou a culpa nos ombros da Grécia. As negociações “não são um jogo de pôquer entre mentirosos”, reclamou. “Ou todos ganham, ou todos perdem.” Contudo, na Europa das dívidas, quebrou-se precisamente o cristal da solidariedade comunitária: a moeda entrou em conflito com o voto. Na esteira do Syriza, o Podemos, novo partido esquerdista espanhol, expande sua influência prometendo combater a União Europeia (UE), descrita como um “inimigo imperialista”.

A intervenção quase inaudível de DSK é a única proposta em circulação que reconhece esse problema crucial. “A Grécia não deve receber nenhum novo financiamento da União Europeia ou do FMI, mas deve obter uma generosa extensão da maturação e uma significativa redução nominal de sua dívida”. DSK quer quebrar o nó górdio. Os gregos precisam andar com as próprias pernas, decidindo soberanamente sobre sua política fiscal, no intervalo aberto pelo alongamento do vencimento da dívida. Se conseguirem retomar o rumo do crescimento, ganham uma reestruturação da dívida, que não é administrável nos valores atuais. Por essa via, os governos dos países credores livram-se da missão impossível de convencer seus eleitores a colocar dinheiro novo na Grécia. Na outra ponta, o governo grego liberta-se das ordens humilhantes dos credores — e perde a chance de atribuir à “Europa” a responsabilidade pelos indispensáveis ajustes econômicos na Grécia.

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Domingo, os gregos votam num referendo que não terá vitoriosos. Se o “sim” triunfar, o governo do Syriza cai, o Podemos perde audiência e a Grécia renegocia um plano de austeridade com os credores. A “normalização”, porém, só serviria para espalhar as sementes do ressentimento entre os cidadãos dos países endividados, minando o futuro da UE. Se, ao contrário, triunfar o “não”, a Grécia abandona a zona do euro e, como na epopeia de Jasão e os Argonautas, aventura-se por mares não cartografados. A queda no abismo do dracma inauguraria uma época de turbulência social interna, trazendo à tona a memória da guerra civil de 1946-49. Nessa hipótese, perseguindo um ilusório Velocino de Ouro, Tsipras reduziria a Grécia à condição de economia isolada, semiestatizada e dependente dos favores russos e chineses.

A sugestão de DSK desfaz a armadilha da escolha impossível entre a moeda e o voto. No período de graça, sem ajuda externa, os gregos teriam de equilibrar sozinhos seu orçamento, coletando impostos e cortando gastos. O governo eleito seria forçado a “confrontar a oligarquia, os interesses escusos e o Estado profundo” que sabotam o potencial de crescimento do país. Na falta de um conveniente “inimigo externo”, os partidos políticos gregos perderiam o álibi tradicional de culpar “a Europa” pelos fracassos nacionais. A lição certamente repercutiria na Espanha e em outros lugares, esvaziando os discursos populistas que, pela esquerda ou pela direita, conclamam à destruição do projeto europeu.

Se a Grécia abandonar a zona do euro, serão pequenos os impactos financeiros imediatos para a Europa. Contudo, terá se rompido o tabu que sustenta, no longo prazo, a união monetária: a crença não escrita de que ela é para sempre, e para todos. Do exílio político forçado, DSK quer preservar o tabu, reconciliando a democracia (o voto) com a economia (a moeda). Haverá, no deserto burocrático europeu, alguém que lhe dê ouvidos?

Demétrio Magnoli é sociólogo.