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O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em 4 de fevereiro, o ministro da Justiça, Sergio Moro, anunciou um conjunto de propostas de alterações legais com o objetivo de combater organizações criminosas, crimes violentos e corrupção, o chamado "pacote anticrime". Logo no dia seguinte, a Pastoral Carcerária Nacional (PCN), ligada à CNBB, publicou uma nota manifestando repúdio às medidas. Segundo a entidade, as mudanças pretendidas resultarão no “aumento do encarceramento em massa, do endurecimento penal e da letalidade policial”. O documento, entretanto, diverge da moral cristã, adotando ideias contrárias ao Catecismo da Igreja Católica.

O primeiro ponto combatido pela nota da PCN é questão das prisões após condenação em segunda instância, que, segundo a entidade, “ignoram o conceito da presunção da inocência e colocam atrás das grades muitas pessoas que não tiveram sua sentença condenatória”. O argumento da Pastoral Carcerária se baseia no inciso LVII do artigo 5.º da Constituição, que garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado formal (o que possibilitaria recursos até quarto grau). Mas a Pastoral Carcerária desconsidera que, após a condenação em segunda instância, não existe mais dúvida pelo Judiciário quanto à autoria e à existência do crime. Ou seja, não há mais que se falar em inocência. Assim, aguardar o julgamento de recursos em terceira e quarta instâncias para a aplicação de pena, quando o juízo de culpa é formado até o segundo grau, contraria o bom senso.

Após a condenação em segunda instância, não existe mais dúvida pelo Judiciário quanto à autoria e à existência do crime

A adoção desse entendimento permitiria que pessoas comprovadamente criminosas ficassem livres até o julgamento de recursos em quarta instância, ou até mesmo evitassem o cumprimento da pena, pela prescrição da punibilidade antes do trânsito em julgado formal. Desse modo, a execução de pena após condenação em quarto grau contribuiria apenas para a propagação do sentimento de impunidade, a difusão de comportamentos lesivos e o prejuízo da ordem pública e da segurança das pessoas.

Segundo o Catecismo, “a legislação humana não goza de caráter de lei senão na medida em que se conforma à justa razão; de onde se vê que ela recebe seu vigor de lei eterna”, e “na medida em que ela [a legislação humana] se afastasse da razão, seria necessário declará-la injusta, pois não realizaria a noção de lei; seria antes uma forma de violência” (par. 1902). Assim, nesse caso, o posicionamento adequado à Pastoral Carcerária seria a defesa do que é conforme a razão (e, portanto, justo), isto é, a aplicação de pena após condenação em segunda instância, e a consequente adequação da lei civil (constitucional ou infraconstitucional). Colocar-se a favor de uma legislação que se distancia do bom senso (e que, portanto, se afasta da lei moral) é uma atitude contrária à fé cristã e prejudica a realização da justiça na sociedade.

O segundo item a que a Pastoral Carcerária se opõe é a previsão da "excludente de ilicitude” no Código Penal (CP), por meio da alteração do artigo 25. Pela redação pretendida, considerar-se-iam em legitima defesa “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem” e “o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. Apesar de o pacote anticrime manter no Código Penal a responsabilidade do agente pelo excesso doloso ou culposo, e incluir no Código de Processo Penal a garantia de investigação para as ações de agentes inicialmente consideradas em legítima defesa, a Pastoral argumenta que a “excludente de licitude irá diminuir as investigações de mortes cometidas por policiais, dando margem para o aumento da letalidade policial”.

Pedro Nery: Por que a CNBB erra na reforma da Previdência (publicado em 29 de março de 2019)

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O parágrafo 2265 do Catecismo explica que “a legítima defesa pode ser não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outros” e que “preservar o bem comum da sociedade exige que o agressor seja impossibilitado de prejudicar a outrem”. É importante observar aqui que Catecismo fala na ação de impossibilitar o agressor, ou seja, prevenir a agressão, que é exatamente o que propõe o pacote anticrime. E o mesmo parágrafo do CIC continua: “a este título os legítimos detentores da autoridade têm o direito de repelir pelas armas os agressores da comunidade civil pela qual são responsáveis”. Assim, além de desconsiderar a preocupação do pacote anticrime com o excesso do agente policial, o posicionamento da Pastoral Carcerária não leva em conta a doutrina da Igreja, que considerada a legítima defesa um dever para os responsáveis pela vida de outros, admite a ação de prevenir a agressão e considera um direto das autoridade o exercício da legítima defesa pelo uso de armas.

O terceiro ponto atacado é o encarceramento em si. Segundo a nota da Pastoral Carcerária, “para combater a violência efetivamente, é preciso combater o cárcere” e “[o sistema prisional] é uma questão de injustiça e desigualdade social, onde os mais vulneráveis são responsabilizados”. Esse item, mais especificamente, tem como plano de fundo a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, documento publicado em 2014 pela Pastoral Carcerária Nacional e outras organizações e que defende “a reversão do encarceramento em massa e (...) a redução gradativa e substancial da população prisional do país”.

Analisando o manifesto, observa-se que a Pastoral Carcerária baseia sua posição não na necessidade de garantir a defesa dos cidadãos, ou “no dever [da legítima autoridade pública] de infligir penas proporcionais à gravidade do delito”, conforme levanta o Catecismo (vide parágrafo 2266 e nova redação do parágrafo 2267), mas sim na “degradação do sistema prisional”, no seu “caráter seletivo” quanto a bens protegidos e pessoas encarceradas, na “criminalização das mulheres”, no patriarcalismo, no excesso de prisões cautelares, na presunção (formal, não material) da inocência e outros. Apesar de algumas das falhas apontadas pela Agenda serem objetivamente inegáveis, a existência delas não justifica a supressão do sistema prisional, pois a detenção se faz necessária para manter a proteção da sociedade e garantir a realização da justiça. Na verdade, o que se faz preciso é a melhora da estrutura e do funcionamento das prisões, de modo a garantir a dignidade do detento e a possibilidade de ele se redimir (conforme nova redação do parágrafo 2267 do Catecismo), e o aperfeiçoamento da legislação penal, a fim de assegurar a proteção das pessoas e a efetiva realização da justiça, conforme ambiciona o pacote do Ministério da Justiça.

A Pastoral Carcerária é um organismo da Igreja Católica e, como tal, tem o objetivo de continuar a ação salvadora de Jesus Cristo na realidade em que atua. A adoção, por ela, de ideias contrárias à doutrina da Igreja, como as utilizadas contra o pacote anticrime, é um contratestemunho a sua missão, gera confusão na formação moral dos fiéis e prejudica o desenvolvimento de uma sociedade sã.

Paulo Roberto Nogueira é contador

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