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Se quisermos posar de país enfezado e truculento como tem sido a Espanha, comprometeremos um de nossos maiores ativos, a simpatia e a tolerância brasileiras

Grandes jornais e notáveis colunistas têm incensado a recente decisão de aplicarem-se a espanhóis as mesmas estapafúrdias normas e constrições que se tem adotado contra brasileiros no Aeroporto de Barajas, em Madri. Arvora-se a bandeira da reciprocidade, a repetir-se erro cometido no primeiro governo Lula, quando passamos a fotografar norte-americanos que desembarcavam no país, para fazer-lhes cara feia e lavar a honra ferida da pátria. Passados os anos, após desgaste político e investimentos vultosos em equipamento e pessoal, o que resta são centenas de milhares de fotos de gringos inócuos, abandonadas em algum lugar real ou virtual de aeroportos caóticos, típicos de países desordenados que já poderíamos não ser.

Assim como à época dos americanos, os espanhóis têm ignorado reclamações e protestos diplomáticos. Alegam que a truculência de sua polícia de fronteira deve-se ao rigor das normas comunitário-europeias de imigração, a desconhecer que os desmandos têm sido perpetrados mormente na Espanha. É certo que o tratamento dispensado a estrangeiros é matéria de domínio interno, reservada à discrição dos governos. Cada país aplica a norma que estimar correta, desde que com respeito ao standard de dignidade que se deve à pessoa humana. Aqui, tem-se valor jurídico absoluto, norma plena de direito internacional escrito, a constituir obrigação jurídica inarredável. Claro que há desvios e mesmo no Brasil já tivemos fatos lamentáveis, a exemplo de decreto que na República Velha estipulava como passíveis de expulsão, de forma textual, "estrangeiros vagabundos, aleijados, ciganos e congêneres".

Uma das pedras angulares do direito internacional, a reciprocidade decorre de razão e de equidade, como medida a não ser aplicada na forma de mera retaliação. Conforma atitude facultativa, opção de conduta, reação proporcional à injusta ação ou omissão, com o cobro de preservar ou de restabelecer a boa relação entre as partes. No caso presente, a invocação da reciprocidade é imprópria e contrária a interesses nacionais relevantes. Hoje, apesar da violência urbana que nos assola, a não excluir turistas e viajantes, bem como da péssima imagem que produzimos, na televisão e no cinema de clichês deploráveis, no imaginário internacional o Brasil é algo de bom e de desejável. Se quisermos posar de país enfezado e truculento como tem sido a Espanha, comprometeremos um de nossos maiores ativos, a simpatia e a tolerância brasileiras, para deixaremos de ser o homem cordial que naturalmente nos habita. Também devemos considerar que polícias de aeroportos não têm vontade própria e que agem ao humor e ao sabor de seus governos. Ora, se o governo espanhol acaba de mudar radicalmente, com novo primeiro-ministro e novo gabinete e se era a polícia do pulverizado Zapatero a que nos perseguia, talvez estejamos prestes a dar na hora errada o troco impróprio.

Apesar de seus desgovernos, o Reino da Espanha é formidável democracia e um dos países que mais se modernizou em breve espaço de tempo. Parceiro estratégico do Brasil, que já foi espanhol por 60 anos, entre 1580 e 1640, os ibéricos têm grande presença em nossa economia, com investimentos vultosos e consolidados. Agora, na contingência de errarmos porque a Espanha errou, beiramos ao desatino, com grandes danos que disso podem decorrer. Em verdade, do que valeria confinar e segregar pessoas em nossos aeroportos antes de deportá-las de forma duvidosa e quiçá em conflito com nossa própria Constituição? Por certo, haveria sempre os que se sentiriam vingados, por não entenderem senão a forma primitiva da gestão de conflitos. No entanto, os prejuízos potenciais superariam em muito qualquer sensação de exercício de poder aparente, sem que as verdadeiras vítimas fossem indenizadas ou que recebessem a devida reparação moral.

Em face dos absurdos verificados, seria desejável que com a proteção e com a representação do Estado brasileiro e de sua Advocacia-Geral, os que se viram atingidos em seus direitos buscassem reparação na própria justiça espanhola, com possibilidade de recurso à Corte Europeia de direitos humanos, que já condenou governos por abusos semelhantes. Afinal, fazer uso civilizado do direito também em jurisdições externas é faculdade a todos disponível, como atributo da modernidade e da globalização jurídica. E por último, para arrefecer os ânimos mais exaltados, nunca é demais evocar o mexicano Otávio Paz, em reflexão acerca da condição humana e de suas vicissitudes: "Ser sábio é saber que não somos inocentes".

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é professor-titular do Instituto Rio Branco e membro do Tribunal Permanente do Mercosul.

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