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A “revolução” da tranquilidade jurídica
| Foto: Fabio Abreu

No Brasil, o que seria realmente revolucionário é atingir um grau de normalidade e tranquilidade jurídicas. Claro que sempre haverá embate entre os mais constitucionalistas e aqueles que acreditam que uma Constituição deve “evoluir”, por ser um “organismo vivo”. Sempre haverá também margem para interpretações. Em qualquer país do mundo há divergências importantes, julgamentos de casos que mudam jurisprudência. Mas em nosso país a arbitrariedade ultrapassa qualquer limite.

Acabamos de ver mais um episódio lamentável do Supremo Tribunal Federal, justamente aquele que deveria ser o guardião da Carta Magna. Numa chicana de Gilmar Mendes, uma liminar foi votada na tentativa de soltar o ex-presidente Lula, isso depois de o próprio Gilmar propor sua soltura antecipada por falta de tempo para analisar a questão. O patamar de abuso a que chegou o STF é assustador. Virou uma palhaçada aquilo ali, mas felizmente o decano Celso de Mello foi a voz do bom senso e a manobra fracassou. Lula segue preso, babaca!

Em seu editorial sobre o caso, a Gazeta do Povo constatou que “o Supremo esteve muito perto de manchar sua história como poucas vezes se viu na vida deste país”, e concluiu: "Uma decisão equivocada da corte motivada por determinadas visões jurídicas ou mesmo ideológicas é grave e perigosa, mas ainda passível de debate e argumentação. No entanto, se Lula tivesse conseguido a liberdade, estaríamos diante da validação do truque regimental, do abandono da missão de julgar, da promoção objetiva da injustiça ou do privilégio por meio de atalhos, independentemente de haver alguma intencionalidade neste sentido. E isso não há como defender”.

O jurista Modesto Carvalhosa, em artigo publicado no Estadão, foi na mesma linha: “O Supremo Tribunal Federal tem, nos últimos anos, criado uma permanente e grave insegurança institucional no país, quando, pelo contrário, deveria promover a paz social na decisão sobre aspectos constitucionais, sobretudo nos confrontos envolvendo notórios corruptos da esfera pública e privada”. As idas e vindas do julgamento dos habeas corpus impetrados pela defesa de Lula são um bom exemplo do caráter circense disso tudo. Já perdemos a conta de quantos foram, e parece que só existe um indivíduo no país todo.

O argumento da importância de nossas instituições republicanas se enfraquece sempre que é preciso lembrar quem são as pessoas por trás dessas instituições

Sobre o malabarismo de Gilmar Mendes, o “garantista” mais exótico que existe, Carvalhosa foi taxativo: “A proposta de Gilmar não tem previsão legal, sendo inteiramente contrária ao ordenamento jurídico”. E alfinetou, à guisa de conclusão: “Pobre país que tem Gilmar Mendes como ministro de sua mais alta corte”. Como negar? Só faltou acrescentar Lewandowski, Toffoli, Barroso...

Quando os ministros do próprio STF rasgam as leis e a Constituição, quem vai ser seu guardião? A quem recorrer numa hora dessas? Alguns ficarão tentados a responder: um cabo e um soldado. E eis onde mora o perigo! Cada vez mais gente embarca nessa ideia rebelde, autoritária, por puro desespero ou cansaço. E o papel dos conservadores é rechaçar essas propostas malucas, já que a missão deve ser fortalecer nossas instituições, não joga-las de vez no lixo.

Mas a missão dos legalistas se torna mais difícil a cada vez que o STF inventa maluquices, estica demais a corda, avança sobre os demais poderes no afã de legislar sem votos, ignora a Constituição que deve proteger. O argumento da importância de nossas instituições republicanas se enfraquece sempre que é preciso lembrar quem são as pessoas por trás dessas instituições. É para defender Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Gilmar Mendes?! Quem tem coragem?

O lado mais revolucionário em nós vai desejar ver logo o circo pegar fogo, pois é um circo, disso resta pouca dúvida. O Thomas Paine existente em cada um de nós vai querer incendiar de uma vez essas instituições carcomidas, apodrecidas. Mas o John Adams, mais conservador, mais cauteloso, mais prudente, vai nos lembrar de que isso é um risco enorme. Vai invocar o “pai do conservadorismo”, Edmund Burke, sobre os jacobinos: “Não ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na França e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. [...] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação que não era possível fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?”

Leia também: O STF contra o “foro privilegiado para edifícios” (editorial de 2 de julho de 2019)

Leia também: O Brasil que eu quero (artigo de Cláudio Slaviero, publicado em 29 de junho de 2019)

Burke sabia que “a raiva e o delírio destroem em uma hora mais coisas do que a prudência, o conselho, a previsão não poderiam construir em um século”. Está complicado conter a raiva diante de tanto abuso, mas o fígado não é o órgão humano mais indicado para a política. Nela, o ótimo é inimigo do bom, e não há muito espaço para soluções mágicas, utópicas, apressadas.

O Brasil ficou refém de uma quadrilha comunista por mais de uma década, e os petistas aparelharam todas as nossas instituições. Além disso, já existiam inúmeros problemas graves antes e, sejamos francos, a qualidade da matéria-prima é ruim: a mentalidade predominante na população brasileira é atrasada, estatizante, tem pouco apreço pelos valores realmente conservadores, pelo império das leis em vez dos homens. Brasileiro gosta de um messias salvador, do sebastianismo à espera de um líder autoritário que vá resolver todos os nossos males num piscar de olhos.

A realidade não funciona assim. As mudanças levam tempo. Há solavancos no caminho, retrocessos. E riscos, muitos riscos. Justamente por causa da impaciência, da indignação legítima, muitos sucumbem à tentação de pegar atalhos, o que costuma levar ao abismo da barbárie.

Não nego que a pressão popular seja importante. O preço da liberdade é a eterna vigilância, e é bom governantes e ministros do STF ouvirem “a voz das ruas”. Mas tampouco a saída está no populismo, em manifestações constantes, em uma democracia direta plebiscitária. As mudanças terão de ocorrer dentro das vias políticas, por políticos que supostamente representam o povo. Serão bem mais lentas do que gostaríamos e talvez do que necessitamos. Mas não há alternativa, ao menos não uma decente. Só espero que as autoridades não estiquem ainda mais a corda a ponto de rompê-la. Brincam com o fogo revolucionário. E a única “revolução” de que precisamos é aquela da ordem e paz, da normalidade, da segurança institucional.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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