A Colômbia continua à espera de uma solução para a matança de civis nas ruas por ordem de seu presidente. Os argumentos do governo colombiano e de seu aparato militar são sempre os mesmos: “são forças paramilitares das Farc que estão matando as pessoas nas ruas; fomos atacados e tivemos de reagir”. O procurador-geral do país, Mario Iguarán, alegou na sexta-feira que foram encontrados indícios de envolvimento de congressistas de Colômbia, Equador e Venezuela, além de jornalistas e integrantes de ONGs de defesa dos direitos humanos, com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Tudo isso não passa de criação do presidente. Na realidade, Iván Duque revelou-se um assassino de carteirinha. Sem acesso ao conhecimento, os colombianos não sabem em que instância ele deve ser responsabilizado, e nem como proceder para ter apoio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos antes e durante o processo judicial.
Há dois tribunais que poderiam julgar, de forma complementar, a violação de direitos humanos do governo colombiano e do corpo militar que o blinda. O Tribunal Penal Internacional, situado na Holanda, julga indivíduos por genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e agressão. Já o Tribunal Permanente de Arbitragem (em inglês, Permanent Court of Arbitration, ou PCA) é uma organização intergovernamental localizada também na Holanda; não é um tribunal tradicional, mas serve como instância de arbitragem para resolver vários tipos de disputas, incluindo casos envolvendo direitos humanos, e é observador oficial nas Nações Unidas. Ambas as instituições teriam competência para julgar o presidente colombiano, pois a Colômbia ratificou o Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, e também é um dos 122 Estados signatários das convenções do PCA, que existe desde o fim do século 19 .
Há dois tribunais que poderiam julgar, de forma complementar, a violação de direitos humanos do governo colombiano e do corpo militar que o blinda
Já a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), segundo seu site oficial, “recebe, analisa e investiga petições individuais em que se alega que Estados-membros da OEA que ratificaram a Convenção Americana ou aqueles Estados que ainda não a tenham ratificado violaram direitos humanos; observa o cumprimento geral dos direitos humanos nos Estados-membros e, quando o considera conveniente, publica informações especiais sobre a situação em um Estado específico; realiza visitas in loco aos países para analisar em profundidade a situação geral, e/ou para investigar uma situação particular. Geralmente, essas visitas resultam na preparação de um relatório respectivo, que é publicado e apresentado ao Conselho Permanente e à Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)”.
A OEA, é preciso lembrar, foi a mesma organização que descobriu a fraude na eleição boliviana e que levou à extradição de Evo Morales no fim de 2019. Contudo, pelo mesmo problema de falta de acesso ao conhecimento que agora acomete os colombianos, boa parte da população boliviana, sedenta por alguns benefícios, materializados por meio da compra de votos, acabou por eleger um correligionário de Morales, o que permitiu seu retorno ao país e a prisão da ex-presidente interina, Jeanine Áñez Chávez, também com uso de fraude na confecção das “provas” usadas contra ela.
No entanto, ainda que o governo nacional e a Comissão de Greve procurem por uma solução para parar o surto social que se arrasta há 24 dias contínuos, nem mesmo esta comissão entende que a solução esteja fora do país.
Enquanto isso, os assassinatos em Cali não param. Em média, há cinco casos por dia, e no episódio mais recente foram mortas sete pessoas, segundo o balanço judicial de quinta-feira, 20 de maio. O primeiro desses sete assassinatos ocorreu na Calle 72u # 28e-08, no bairro de Poblado: Angie Johana Valencia Ordoñez, 27 anos, foi baleada e levada para o Hospital Carlos Holmes Trujillo, onde morreu.
O histórico é alarmante. Pelo menos 43 pessoas morreram nas mãos da polícia colombiana desde que os protestos eclodiram no fim de abril, segundo dados de organizações civis, que também relataram 18 vítimas de violência sexual, cerca de mil detenções e outros 2,4 mil casos de violência policial.
A administração Biden tem sido muito mais cautelosa na crítica aos abusos em comparação com outros países da região
O Alto Comissário para a “paz”, Miguel Ceballos, funcionário nomeado por Iván Duque para construir pontes, em resposta à morte de diversos civis à queima-roupa no meio da rua e ao pedido de desmilitarização feito pela ONU e organizações de direitos humanos, respondeu que “a desmilitarização não é possível em nenhuma Constituição Política de um país que tem um Estado de Direito. Eles fazem parte da institucionalidade e os cidadãos devem ser protegidos”.
A Colômbia é o maior aliado dos Estados Unidos na América Latina; a administração Biden tem sido muito mais cautelosa na crítica aos abusos em comparação com outros países da região. Devido à demora causada pela falta de uma autorização do Conselho de Segurança da ONU para um embargo global abrangente de armas na Colômbia, Jalina Porter, porta-voz adjunta do Departamento de Estado norte-americano, solicitou, em 9 de maio, “máxima contenção às forças públicas para evitar mais perdas de vidas”, o que não está ocorrendo.
Entidades de direitos humanos têm sido mais incisivas nas críticas. A Anistia Internacional (AI), sediada em Londres, considera que o governo colombiano “está utilizando indevidamente armas e equipamento dos EUA para cometer violações dos direitos humanos contra manifestantes na Colômbia” e instou o Secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, a “cessar imediatamente o fornecimento, venda ou transferência direta ou indireta de equipamento utilizado para fins de repressão”, mas isso é decisão demasiada tardia.
Muito oportuno, também, levar em consideração a acusação da organização Human Rights Watch em relação ao presidente Iván Duque. Segundo a HRW, Duque promoveu em seu governo nove supostos criminosos de guerra que estão implicados de forma crível em execuções extrajudiciais e outros abusos. Entre os suspeitos de crimes de guerra, disse a organização de direitos humanos, encontra-se o general Nicasio de Jesus Martinez, comandante do Exército Nacional.
O atual chefe do Exército foi o segundo no comando da 10.ª Brigada, investigada por supostamente executar 23 civis e apresentá-los como “mortos em combate” em 2005. A HRW afirma, ainda, ter provas de que o comandante pagou US$ 400 milhões para falsificar informações que levaram a “excelentes resultados” em duas operações militares. Numa destas operações, uma criança de 13 anos e um adulto foram assassinados. Nenhuma das vítimas era guerrilheira, ao contrário do que foi dito pela unidade de Martínez.
Além dos assassinatos de civis nas ruas, há outros escândalos sob investigação envolvendo o governo colombiano. Duque tem até esta terça-feira, dia 25, para entregar os contratos assinados com diferentes empresas farmacêuticas para a aquisição de vacinas contra o coronavírus. A ordem foi emitida pelo Tribunal Administrativo de Cundinamarca, após avaliação de possíveis falsas razões apresentadas pela Unidade Nacional de Gestão de Riscos de Catástrofes para a compra dessas vacinas. Nesta disputa entre a verdade temporária e a verdade permanente, sempre ofuscadas pela avalanche de informações sem provas, tem-se um governo que manda matar para manter o poder enquanto imputa esse comportamento a outros, e ao mesmo tempo usa a pandemia para fazer um caixa dois com as vacinas, tornando mais crível a acusação de envolvimento direto nas mortes durante os protestos e interligando a corrupção e os atentados contra a vida dos colombianos.
Resta, portanto, que um comitê de advogados colombianos ingresse com uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, e, a partir do relatório publicado, vá em busca de uma decisão judicial combinada entre o Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Permanente de Arbitragem: uma, pelo crime de morte de civis nas ruas pela força militar colombiana, por ordem do presidente Iván Duque; outra, por alianças com outros países para manter o país protegido de um embargo do Conselho de Segurança da ONU.
Cristiano Trindade De Angelis é PhD em Gestão de Projetos e autor de “Gestão por Inteligências”.
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