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O impasse atual decorre da escolha do governo de Netanyahu de passar uma borracha sobre o aprendizado de seus predecessores

Perante a ONU, Mahmoud Abbas disse que o reconhecimento do Estado palestino equivaleria a fazer mais uma "Primavera Árabe". A verdade é exatamente o inverso: a iniciativa tem o propósito de evitar uma "Primavera Árabe", desviando a frustração popular nos territórios ocupados para a esfera da diplomacia internacional. Contudo, como tantas coisas, o plano pode ter consequências indesejadas, deflagrando precisamente a revolta que almeja impedir.

Na sua resposta, Benjamin Netanyahu lançou sobre Abbas a responsabilidade pelo fracasso das negociações de paz, invocando seu pretexto predileto: os palestinos se recusam a reconhecer Israel como "Estado judeu". A verdade é que a OLP reconhece oficialmente Israel desde os Acordos de Oslo, de 1993, e o pedido palestino encaminhado à ONU representa tanto o reconhecimento das fronteiras anteriores a 1967 quanto uma renúncia definitiva aos territórios palestinos perdidos na guerra de 1948. Entretanto, nenhuma liderança palestina pode cumprir o requisito maximalista de Netanyahu, pois um quinto dos cidadãos israelenses não é de judeus, mas de palestinos.

Não se reconhece o Irã como "Estado islâmico" ou Cuba como "Estado socialista", mas apenas como Estados soberanos. Quando se firmaram os Acordos de Oslo, ninguém exigiu da OLP o que agora reclama o chefe de governo de Israel. Definir a natureza de Israel não compete aos palestinos, mas unicamente aos próprios israelenses, que sempre estiveram divididos acerca do tema complexo, com repercussões variadas sobre os direitos da minoria árabe e também sobre os privilégios legais dos judeus ortodoxos. Correntes radicais em Israel, com assento no gabinete de governo, já propuseram cassar os direitos políticos da minoria não judaica. Ao demandar o reconhecimento de Israel como "Estado judeu", Netanyahu exige algo duplamente impossível: que a OLP coloque um selo de legitimidade sobre a expulsão dos palestinos de suas terras na guerra de 1948 e que admita a hipótese de supressão da cidadania da minoria árabe-israelense. O primeiro-ministro sabe disso — e, exatamente por saber, insiste na exigência.

O sionismo atravessou três etapas distintas tentando responder à espinhosa questão da soberania sobre a Terra Santa. No início, elegeu o caminho de negar a presença física e a existência política de árabes palestinos na Palestina. A negação se expressava no lema da "terra sem povo para um povo sem terra" e na figuração dos habitantes daquelas terras como nômades do deserto. Na etapa seguinte, que coincide com a guerra de 1967, a presença física palestina já não era passível de negação, mas se rejeitava a existência nacional dos palestinos. A Jordânia, dizia a líder israelense Golda Meir, era o Estado palestino. Uma etapa final, marcada pela ocupação dos territórios palestinos e pela intifada, propiciou um choque de realidade. "Há dois povos e duas bandeiras na Terra Santa", declarou Shimon Peres na hora dos Acordos de Oslo.

O impasse atual decorre da escolha do governo de Netanyahu de passar uma borracha sobre o aprendizado de seus predecessores. O primeiro-ministro é um herdeiro da tradição sionista, mas sua maioria parlamentar ergue-se sobre um componente estranho a essa tradição: o Yisrael Beitenu, do ministro do Exterior Avigdor Lieberman. Baseado nos imigrantes recentes oriundos da antiga URSS, o partido não reflete a experiência histórica israelense, mas uma cisão do sionismo anterior à fundação do Estado judeu. Sua fonte doutrinária encontra-se no pensamento de Zev Jabotinsky que, há 90 anos, imaginou Israel como uma federação judaico-árabe dirigida pelos judeus no conjunto indivisível da Terra Santa. A visão de Jabotinsky, uma relíquia resgatada das águas do passado, norteia a política oficial do Estado de Israel.

Uma crise devastadora atravessa o sionismo. A coalizão governista, formada pela aliança do Likud com o Partido Trabalhista, subordina-se voluntariamente à orientação anacrônica de Lieberman, que inviabiliza a solução da paz pela divisão da Terra Santa em dois Estados. Há pouco, o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert pediu a reabertura urgente das negociações com Abbas e alertou para as consequências desastrosas da política oficial: "Os futuros líderes palestinos podem abandonar a ideia de dois Estados e buscar uma solução de Estado único, tornando impossível a reconciliação."

Não foi o respeito aos direitos dos palestinos, mas as realidades da geopolítica e da demografia que conduziram o sionismo à "ideia de dois Estados". Hoje, no conjunto Israel/Palestina, a população árabe-palestina supera a judaica. O Estado de Israel só pode conservar a ocupação dos territórios palestinos mediante a supressão permanente dos direitos políticos da maioria da população da região — ou seja, por meio de um regime de apartheid incompatível com os princípios admitidos pela comunidade internacional. Olmert está dizendo que a solução dos dois Estados é a única capaz de preservar Israel como Estado judeu e democrático. E, ainda, que Netanyahu representa uma ameaça concreta ao ideal sionista sobre o qual Israel se constituiu.

Jabotinsky não almejava um Estado judeu, mas um Estado único dirigido pelos judeus. A OLP acalentou por algum tempo o sonho de um Estado único dirigido pelos palestinos, mas acabou aceitando a "ideia de dois Estados". Uma ideia, contudo, não perdura eternamente. Sob o impacto combinado da desmoralização do processo de paz, das revoluções populares árabes e do isolamento regional de Israel, os palestinos podem desistir da miragem de um Estado nacional nas fronteiras anteriores a 1967. Nessa hipótese, eles seguiriam o exemplo dos negros sul-africanos e passariam a exigir direitos iguais de cidadania para todos os habitantes do conjunto Israel/Palestina. Acomodado à sombra de Jabotinsky, Netanyahu os empurra rumo à opção do Estado único.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail:demetrio.magnoli@terra.com.br.

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