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Querem uma receita para utilizar dinheiro público com largueza, sem controle e sem o risco de ser levado a uma CPI? Funde uma ONG, procure seus amigos, "companheiros de luta" e correligionários instalados no governo – federal, estadual ou municipal tanto faz – e célebre com eles um convênio ou contrato para fins pouco específicos. Pode ser "a defesa da cidadania", a "redução das desigualdades" , "O resgate da experiência histórica ou a "inclusão digital", por exemplo, embora nessa última matéria (apud Ernani Buchman) a lembrança do nosso querido Julio Gomel e sua especialidade médica sejam inevitáveis. Em seguida, terceirize sem licitação (já que as ONGs não precisam se submeter a essa liturgia demorada e incômoda) os "trabalhos" contratados para uma empresa constituída por outros amigos ou companheiros de luta e repasse para a mesma os recursos públicos que recebeu, ficando a ONG com uma módica comissão pelo seu "esforço".

A tecnologia foi aplicada pelo casal Garotinho–Mateus no governo do Rio de Janeiro onde apenas a Fundação Escola de Serviço Público (FESP) repassou mais de 240 milhões de reais para 11 entidades escolhidas pelo critério técnico conhecido no interior do Paraná como AZ, "A Zóio". Uma das entidades recebeu mais de 110 milhões para fazer um "diagnóstico do sistema de saúde do Estado", aquele mesmo que não tem dinheiro para evitar que as pessoas sejam amontoadas em macas, morram nos corredores dos hospitais ou fiquem sem tratamento por falta de gaze e esparadrapo. Ah, e o tal diagnóstico? Foi terceirizado pela ONG para uma firma de consultoria constituída alguns meses antes... Simples , não é? Infelizmente o modelo fluminense não é inédito e está sendo utilizado no Brasil inteiro.

Quer mais, paciente leitor? O tal MLST que invadiu e depredou parte do edifício do Congresso Nacional é ligado a uma ONG, a Anara, a Associação Nacional de Apoio à Reforma Agrária, que recebeu quase 6 milhões de reais do governo federal em pouco mais de três anos. Para quê? Boa pergunta. Quer ainda mais, perplexo leitor? Faça como eu e recorra ao Google para ver a enxurrada de dinheiro público que está sendo utilizado sem qualquer controle, a não ser o litúrgico, formal e documental típico dos Tribunais de Contas, absolutamente desaparelhados em termos conceituais para analisar o destino final e os objetivos dos gastos com dinheiro público repassados ao Terceiro Setor, limitando-se ao controle documental. Assim, ONGs "do bem", que mobilizam centenas de milhares de voluntários altruístas para emprestar talento, tempo, trabalho abnegado e entusiasmo em iniciativas do padrão ético e moral inatacável de uma Pastoral da Criança, de um Pequeno Cotolengo ou das APAEs, para ficar em apenas três exemplos dos milhares possíveis, foram colocadas na companhia incômoda de ONGs criadas e mantidas com propósitos de financiar os interesses políticos e doutrinários particulares de alguns grupos, que perseguem objetivos que nada têm de universais. Ou, simplesmente, para sugar discreta e eficientemente os recursos que a população entregou ao Estado para que ele os devolvesse sob a forma de serviços públicos à totalidade da nação. É preciso sempre ter em mente que o fim último do Estado, aquela organização supra-individual, dotada do monopólio da violência legal, é equilibrar os interesses e os apetites dos indivíduos e dos grupos que compõem uma sociedade para que a vida humana em associação seja possível. Ao Estado cabe coibir a violência dos mais fortes contra os mais fracos, dos mais organizados contra os menos organizados, para evitar que as leis da barbárie prevaleçam ou o processo legislativo e político seja desmoralizado; ao Estado cabe administrar a justiça imparcialmente para exigir que as leis votadas pelos cidadãos por intermédio de seus representantes sejam obedecidas, pois, caso contrário, para que processo político? Ao Estado compete disponibilizar universalmente serviços públicos que facilitem o acesso à educação, à saúde, à vida digna e às oportunidades, que – caso contrário – estariam restritas aos ricos e poderosos. Uma coisa é certa: o Estado não existe para distribuir recursos para amigos, correligionários, aliados ou companheiros de luta.

É preciso atentar urgentemente para essa situação, que custa ao contribuinte brasileiro dezenas de bilhões de reais por ano e desmoraliza o Estado. Protegidas pela ambigüidade e anacronismo das leis e das práticas de controle público e pelo silêncio cúmplice de governantes discretamente simpáticos ou associados com a prática, as ONGs "do mal" se espalham velozmente em todos os setores da administração pública brasileira. E assim, os agentes do Estado se transformaram em agentes, às vezes involuntários, de interesses e apetites particularistas desse ou daquele grupo político ou, pior ainda, de grupos parasitários que vivem à custa de sugar os cofres estatais.

O Estado brasileiro, como instância de intervenção sobre a realidade econômica e social já há tempo sumiu, abastardou-se, emasculou-se. E em seu lugar, está surgindo uma poderosíssima máquina clientelista e corruptora disfarçada de Terceiro Setor. É o Estado privado, que pertence a alguns grupos de interesses, o Estado Terceirizado.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da FAE Business School e membro da Academia Paranaense de Letras.

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