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| Foto: Federico Parra/AFP

No dia 30 de março, a capital e pelo menos uma dúzia dos 23 estados deste país ficaram sem energia. Foi o quarto apagão grave a atingir a Venezuela no mês. O governo pôs a culpa do colapso em um “ataque eletromagnético” perpetrado pelos EUA e nos atos terroristas da oposição.

Nos últimos seis anos, mais e mais os cidadãos vêm sendo relegados à própria sorte, uma vez que o governo de Nicolás Maduro se prova definitivamente incapaz de fornecer até os serviços mais básicos como alimentação, assistência médica, eletricidade e, em breve, água. Se o primeiro blecaute de sete de março expôs como décadas de más administrações destruíram a economia, a sociedade e a infraestrutura do país, o último não deixou esperança nenhuma de que o governo tenha capacidade de encontrar soluções para os inúmeros problemas da nação.

Há anos os venezuelanos patinam em crises sociais e econômicas simultâneas, mas os blecautes conseguiram deixar tudo ainda pior. A vida não apenas ficou mais difícil da noite para o dia, mas também a perspectiva de que um dia possa melhorar está cada vez mais distante.

O primeiro apagão deixou a população sem serviço de telefonia e internet durante pelo menos quatro dias. Por toda parte, hospitais entraram em colapso e inúmeros lugares não tinham nem água. Uma vez que o Estado continua lhe faltando continuamente, o povo fez o que vem fazendo há anos: foi buscar soluções próprias para os problemas públicos. E a improvisação coletiva só enfatiza a vulnerabilidade que tomou conta do país.

O primeiro apagão deixou a população sem serviço de telefonia e internet durante pelo menos quatro dias

Inúmeras imagens de pessoas retirando água de riachos poluídos pipocaram nas redes sociais, anunciando epidemias com que um sistema público de saúde já falido não vai ter condições de lidar. Em Maracaibo, segunda maior cidade do país, mais de 500 casas comerciais foram saqueadas e destruídas. O medo de um novo episódio de violência preocupa a todos.

Com a falta de energia prolongada, ficou difícil comprar comida, já que as máquinas de pagamento com cartão não funcionam sem eletricidade. Em questão de horas, as pessoas começaram a usar dólares. Em Maca, no bairro de El Llanito, em várias feiras livres apareceram placas anunciando que aceitavam “alfaces”, código local para a moeda norte-americana. Da noite para o dia, a economia foi dolarizada informalmente.

Na verdade, várias crises simultâneas indicam que a solução para um problema pode acarretar outro. Com a alta criminalidade, qualquer um pode morrer por ter um punhado de notas estrangeiras. Dentro de um dos mercados, uma mulher me conta, agarrada à bolsa, que o dinheiro que possui foi presente de um parente que a visitou no Natal. Paula, dona de casa de 50 e poucos anos, faz questão de enfatizar que “só tem algumas notas de vinte”. Ela temia que os meliantes do bairro a atacassem. “Se você não morre de fome, a bandidagem te mata”, filosofa.

Se o apagão aplicou um golpe mortal na economia, alijou o sistema público de saúde ainda mais, pois os hospitais, em frangalhos, já vinham enfrentando havia tempos a escassez de remédios e de peças necessárias para reparo de seus equipamentos. Dezenas de pacientes morreram quando os geradores, muito antigos, não funcionaram. Médicos do Hospital Domingo Luciani, em Caracas, me descreveram o esforço vão de tentar manter os pacientes vivos com ventiladores manuais; recém-nascidos morreram em incubadoras ociosas. No dia em que lá estive, a eletricidade finalmente tinha sido restaurada, mas ainda não havia água. Ao lado das camas dos pacientes, havia várias garrafas de cinco litros que os próprios parentes levaram, em mais um exemplo do povo tendo de se virar sozinho.

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Um jovem cirurgião, que preferiu se manter anônimo para evitar represálias, me disse que a falta de água também agravava a escassez de instrumentos cirúrgicos. “Temos de descartar porque, nessas condições, não é possível esterilizá-los.”

Por mais chocante que seja ver hospitais operando sem água, na maioria dos bairros a ocorrência virou norma. Às quatro da manhã, na periferia de Petare, na favela de San Blas, mulheres faziam fila na rua para pegar água de uma bica. A espera é carregada de revolta. Leticia Vargas, segunda na fila depois de uma espera de três horas, descreveu a rotina vivida com o mínimo indispensável. “Passamos de pobres a miseráveis”, constata a mulher de 50 anos. Com a regata cheia de furos e os olhos fundos no rosto macilento, ela parecia pelo menos dez anos mais velha.

Ao desespero de Vargas se alia a sensação de desesperança. “Eles prometem, mas nunca resolvem nem fazem nada”, diz, referindo-se ao governo. Zuri Zambrano, a seu lado na fila, exclama: “Só nos oferecem mentiras”, em voz tão alta que o primeiro da fila olhou para trás, sobressaltado.

O homem é Jeison Carvajal, diretor do conselho comunitário pró-governo. Sua função hoje é limitar o tempo de cada um na bica. Parado ao lado de um cilindro de metal largo de onde jorra a água, ele me diz que o plano original era instaurar diversas fontes para encurtar a espera. Depois de vinte anos no poder e um lucro de quase um trilhão de dólares com o petróleo, o melhor que o governo tem a oferecer à população de San Blas é uma solução improvisada. E nem isso conseguiu.

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Quando pergunto a Vargas e suas amigas se já pensaram em protestar, elas descartam a possibilidade. “Se a gente tentar, o Exército mata”, resume ela. Zambrano acrescenta: “A revolta é grande, mas, tendo de ‘caçar’ comida, água e remédio, não tenho tempo para pensar nisso. Além do mais, não vai mudar nada”, afirma. Péssimas condições de vida e o medo da repressão às vezes desmobilizam uma sociedade como San Blas; outras vezes, como em Maracaibo, a insuflam.

Ao contrário de Caracas, a cidade já vem sofrendo apagões diários há quase um ano. Aquela que já foi o destaque de um setor petrolífero robusto hoje se tornou o centro de uma operação de contrabando de gasolina para a Colômbia e porta de saída para milhões de pessoas que estão indo embora. A economia local está tão ruim que sobrevive praticamente à base de troca, não de venda.

Como resultado do blecaute de sete de março, três dias de protestos abalaram o município. Os registros in loco da imprensa pareciam mais cenas saídas de “Mad Max”, mostrando a multidão invadindo as ruas, destruindo e roubando tudo, desde lojas até shopping centers inteiros, incluindo fios de cobre. A cidade foi canibalizada.

Por enquanto, Caracas foi poupada dos horrores que afligem Maracaibo, mas não há muito que um governo falido, deslegitimado e agora sancionado possa fazer por seu povo. Se os apagões virarem regra, talvez não continuemos tendo tanta sorte. Temo que a violência e os saques se espalhem feito fogo em palha seca, não só na capital, mas por toda parte. O que talvez seja mais um golpe fatal para a Venezuela.

Virginia Lopez-Glass é jornalista e já cobriu a Venezuela e a América Latina extensivamente para a imprensa internacional. Foi correspondente da Al Jazeera English.
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