| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Denúncias relacionadas a abuso sexual na infância e adolescência têm sido recorrentes na mídia. Após escândalos envolvendo a Igreja Católica e esportistas de diversas nacionalidades, esse triste fato tornou-se foco de discussão. Infelizmente, apenas a discussão é nova, o fato ocorre diariamente, nas diversas classes socioeconômicas, em contextos muitas vezes domésticos e em números assustadores. Segundo estimativas de várias ONGs dedicadas à infância, como a Unicef e Save the Children, uma a cada cinco crianças são vítimas de violência sexual, ou seja, 20% da população sofreu algum tipo de abuso durante a infância. Porém, o relatório Olhos que não querem ver (Save the Children) denuncia que somente 15% dos casos de violência sexual contra um menor são denunciados. Tal disparidade nos deve fazer pensar em por que tantas crianças são abusadas e tão poucas são amparadas.

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Em geral, a criança não conta sobre o abuso, pois sentimentos de culpa, medo, ameaças e inferioridade a assombram

Estima-se que entre 70% e 85% dessas agressões procedem de um parente ou de alguém próximo ao núcleo familiar. A idade média do primeiro abuso é em torno de 9 a 10 anos. Nessa fase de vida ocorre a organização, diferenciação, sofisticação e ampliação do aparato psíquico. Em outras palavras: a preparação para um adulto saudável psiquicamente. Um abuso sexual ocorrido nesse momento – e, em geral, por alguém que deveria trazer confiança – causa um desequilíbrio no amadurecimento psicológico. Desde fatores neuroquímicos liberados pelo estresse causado pelo abuso, muitas vezes repetitivo, até aspectos que envolvem a construção do ego, trazendo sentimentos de culpa, vergonha, inferioridade e desconfiança. Nessa fase da vida, a natureza nos faz equilibrar sentimentos impulsivos com sentimentos mais refinados e elaborados. Os laços de confiança se concretizam, assim como uma identidade e uma personalidade íntegra. Isso aconteceria num mundo perfeito. Em vítimas de abuso sexual – o que não envolve apenas penetração – a formação psíquica ocorre, muitas vezes, de forma desordenada, trazendo consequências a longo prazo.

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Em geral, a criança não conta sobre o abuso, pois sentimentos de culpa, medo, ameaças e inferioridade a assombram. Mas mudanças de comportamento já são visíveis: alterações de sono, apetite, retraimento social, redução do rendimento escolar, irritabilidade, agressividade, tristeza e choro imotivado devem nos fazer prestar atenção. Tais sintomas podem ser compartilhados com diversas causas, mas entre elas, nós, os adultos, devemos cogitar a possibilidade de abuso sexual. Num mecanismo de defesa, achamos que isso nunca ocorrerá tão próximo de nós, mas não é o que as notícias e as estatísticas revelam. Formas adequadas de abordar o assunto com uma criança devem ser rotina e parte da educação. Não se trata de uma aula de etiqueta, mas sim da formação de uma pessoa saudável. O tabu em discutir-se sexualidade e abuso na infância deve ser quebrado. Mas vale ressaltar que, para tudo, há formas adequadas, bom senso e informação para uma abordagem assertiva. Respeitar a fase da infância, seu contexto cultural, suas habilidades sociais e seu nível de amadurecimento, é fundamental. É preciso trazer o assunto para o cotidiano, mas de forma qualificada. Assim, desmistificamos o medo e o sentimento de inferioridade que o abusador causa à vítima e trazemos mais discernimento à criança de quem realmente está errado. Seu diálogo fica mais aberto e a proximidade com a família se estreita, reduzindo também aspectos de desconfiança.

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Atualmente, grande parte dos casos de abuso sexual na infância e adolescência só vem ao conhecimento de outros (inclusive da justiça) na fase adulta. Anos se passam até que o adulto consiga externalizar essa violência. Até lá, a probabilidade de doenças psiquiátricas aumenta de forma considerável. Suicídio, depressão, transtornos de personalidade, ansiedade generalizada e transtorno bipolar são exemplos de doenças comportamentais que têm a taxa aumentada na vigência de um abuso sexual. Os transtornos psiquiátricos atingem cerca de 700 milhões de pessoas no mundo, representando 13% do total de todas as doenças. Podemos pensar que esse número ainda está subnotificado, devido ao preconceito e à psicofobia ainda existentes. Depressão já é a segunda causa mais comum de invalidez em todo o mundo e suicídio é a terceira causa de morte entre jovens, sendo que o Brasil ocupa 8ª posição no ranking mundial de suicídio. Tal panorama nos faz ver que as consequências a curto e longo prazos do abuso sexual estão mais perto do que imaginamos, assim como as vítimas. Basta enxergar.

Raquel Heep é médica psiquiatra e mestranda em Ensino nas Ciências da Saúde. É preceptora e docente da residência médica em psiquiatria da Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde de Curitiba (Feaes) e professora de Saúde Mental do curso de Medicina da Universidade Positivo (UP).