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Oposição quer povo na rua contra legalização do aborto
Oposição quer povo na rua contra legalização do aborto| Foto: Unsplash

Na falta de uma agenda parlamentar mais consistente, o partido de “oposição à esquerda”, cujo nome já se perde na contradição de expressões que lhe deram, resolveu ficar na oposição da democracia. Ingressou com uma ação constitucional (ADPF 442) com o fim de atropelar o natural, legítimo e insubstituível debate legislativo sobre o aborto por meio de uma resposta jurisdicional do STF, o qual, no frigir dos ovos, se verá, mais uma vez, tentado a prodigalizar outra aula de ativismo judicial. Veremos.

Explico. Esse partido, que porta a “única” dimensão existencial em que o socialismo rima com a liberdade, pleiteia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação do feto, hipótese não contemplada pelos dois incisos do artigo 128 do Código Penal. Em outras palavras, o partido pretende, por meio do exercício do direito à jurisdição, cujo véu, diáfano, permite vislumbrar o autoritarismo da atitude, que os onze iluminados ministros de nossa Suprema Corte, ao fim, acabem por legislar no lugar dos 513 deputados e 81 senadores que foram eleitos para isso.

O feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. O feto será uma criança, um adolescente ou um adulto se não existir nenhum obstáculo.

Como diz a turma “bem-pensante” que defende o homicídio uterino, entre eles artistas, cantores, intelectuais e alguns desocupados úteis, “precisamos falar de aborto”. Concedemos o ponto, mas venhamos e convenhamos: os argumentos lançados em prol da execução sumária de seres inocentes e indefesos já viraram um grande e entediante monólogo de um mesmo e estultificante discurso pleno de razões e nulo de razão.

A ADPF 442, um verdadeiro e próprio panfleto abortista, estampa, em sua inicial, aquele monólogo, cujos argumentos, no limite, dada a inconsistência lógico-teórica invencível, mais lembram a arte de esgrimir a parede. Destaquemos alguns: retórica utilitária (“o futuro mutilado de adolescentes grávidas ou de mulheres abandonadas já com muitos filhos”), criminal (“só se punem as mulheres pobres”), sanitária (“abortos clandestinos matam muitas gestantes”), feminista (“sou dona do meu corpo”) ou eugênica (“sofre disso ou daquilo e não tem viabilidade existencial”).

Não pretendemos dissecar aqui todas essas linhas retóricas. Apenas uma delas, a mais sofisticada, a premissa retórica escrita na petição inicial, de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”. Aqui, parece-me, é onde “a cobra vai fumar”.

A questão fundamental está em saber se o STF quer, com sua decisão final, fomentar uma parentalidade responsável ou uma paternidade descomprometida.

Nessa linha de raciocínio, quer dizer que até o dia em que eu nasci eu fui um amontoado celular, com uma vida manipulável ao sabor dos interesses alheios. Quando minha cabeça passou pelo ventre de minha mãe, num passe de mágica, eu virei pessoa e, a partir de então, minha vida passou a ser tutelada pela lei e pelo ente estatal. Ou, dito de outra maneira, segundo o autor da ação, eu não precisaria esperar pelas 40 semanas para me tornar pessoa: a partir da 13ª, eu já poderia respirar aliviado. Obrigado, PSOL!

Independentemente do suporte biológico que “sustenta” a tese da 12ª semana, que, no fundo, é uma desculpa científica que porta uma visão eugenista da vida, essa mesma tese parte de um pressuposto bem claro, isto é, uma espécie de reconhecimento do outro como pessoa, baseado somente na projeção de uma identidade, quando o feto deixaria de ser feto e passaria a se chamar Elena ou Letizia.

O problema é que essa “validade onomástica” tornaria o direito à vida uma faculdade e não um dever. Privatiza-se, assim, a noção de vida humana. Para mim, é Sofia. Para ele, é uma parte do corpo. Para ela, uma “coisa” a ser chancelada por uma relação de identidade e, para os partidários da “liberdade socialista”, “simples criaturas humanas intraútero”. Nietzsche recorda-nos de que “na história da sociedade, há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica e o faz a sério e honestamente”.

A maneira como vejo o outro plasma minha própria humanidade. Só posso tratá-lo como coisa se esquecer a dignidade dele e a minha.

É o caso da ADPF 442, um verdadeiro “aborto processual”, porque pretende inovar na ordem jurídica brasileira, ao arrepio do diálogo horizontal legislativo nas duas câmaras parlamentares, e fazer da pauta abortista – a pauta da cultura da morte – uma espécie de destino inexorável de nossa sociedade.

Por outro lado, o ato de reconhecimento da identidade pessoal e irrepetível do embrião está repleto de consequências para o sujeito desta relação, não só pelas obrigações morais daí decorrentes, mas porque nele se reflete, como Narciso que se olha na lâmina d’água, a mesma identidade humana contida em seu julgamento.

Como já disse um grande filósofo, mais ou menos assim, o olhar que eu, livremente, dirigir a outro decide minha própria dignidade. Se permitir que o outro seja reduzido a uma coisa para usar e destruir, deverei ao mesmo tempo aceitar as consequências de meu modo de ver, que recairão sobre mim mesmo. A maneira como vejo o outro plasma minha própria humanidade. Só posso tratá-lo como coisa se esquecer a dignidade dele e a minha e a imagem dele e a minha. Em outras palavras, o outro é o guardião de minha dignidade.

Com efeito, a questão do reconhecimento do estatuto do embrião é decisiva tanto para o sujeito desta ação quanto para a visão de mundo que o aceita ou repele. Cremos que, se questões puramente práticas, como o aborto livre, não estivessem envolvidas, dificilmente alguém poria em dúvida a verdade do aporte científico da embriologia para o tema, qual seja, o de que desde a fecundação estamos lidando com indivíduo vivo e dotado de uma estrutura própria e irrepetível.

Todavia, os partidários do socialismo com liberdade – algo equivalente a ser um terraplanista na política – preferem falar de aborto. Agora, não concedemos o ponto. Precisamos falar de feto. O feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. O feto será uma criança, um adolescente ou um adulto se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho. A questão fundamental está em saber se o STF quer, com sua decisão final, fomentar uma parentalidade responsável ou uma paternidade descomprometida.

E para aqueles bravos partidários, que posam como defensores das pautas feministas, deixo aqui um ponto de reflexão: já pararam para pensar que metade dos fetos, para os quais se pede uma pena de morte sem o devido processo legal – metaforicamente, um paredón castrista –, não são um tumor maligno, um quisto sebáceo ou um ataque de aerofagia, mas são fetas?

André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é professor-pesquisador, membro da Academia Campinense de Letras e autor do livro “Livre para nascer – O aborto e a lei do embrião humano”.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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