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Adultização infantil: crimes contra as crianças têm várias camadas

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia de sanção do Projeto de Lei n° 2628/2022, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente Digital. Palácio do Planalto – Brasília (DF) Foto: Ricardo Stuckert / PR (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

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A recente mobilização desencadeada pela denúncia do influenciador digital Felca, por meio do vídeo "adultização" e que culminou com a aprovação do chamado ECA Digital, destacou um problema alarmante e urgente: a violação da dignidade infantil começa muito antes de qualquer ato explícito nas redes — já ocorre no armazenamento de conteúdo pornográfico envolvendo crianças. Essa prática, muitas vezes negligenciada, configura um crime autônomo e merece a mesma atenção legislativa.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) estabelece de forma clara que o respeito à infância é um direito inalienável. O artigo 17 assegura “a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Já o artigo 18 determina que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Esses dispositivos revelam que a adultização não é apenas uma questão moral, mas uma violação direta da lei e da própria essência da proteção integral.

A adultização infantil é um crime em camadas, que começa na desatenção ao direito ao respeito e à dignidade previsto no ECA, se perpetua no armazenamento de conteúdo e pode se agravar com a exposição digital

O vídeo de Felca — que alcançou dezenas de milhões de visualizações em poucos dias — expôs como influenciadores e plataformas se apropriam da imagem de crianças de forma sexualizada, muitas vezes sem consentimento e com incentivo algorítmico, configurando grave ofensa ao ECA. Mas a questão vai além da exposição pública: o simples ato de armazenar conteúdo pornográfico infantil já é crime, independentemente de compartilhamento.

Esse entendimento foi reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 1.168 sob o rito dos recursos repetitivos. A corte fixou que os crimes de distribuição/divulgação (artigo 241-A) e posse/armazenamento (artigo 241-B) de pornografia infantil são condutas autônomas, passíveis de concurso material. Em outras palavras, armazenar e compartilhar não se confundem; cada ato configura crime distinto e pode ser punido cumulativamente. O relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, destacou que perícias frequentemente revelam diferenças entre os conteúdos armazenados e aqueles divulgados, reforçando a autonomia das condutas. Essa interpretação é fundamental: a violação da dignidade infantil não depende de “viralização” ou repercussão social — ela já existe no momento em que o material é guardado.

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O impacto do vídeo, publicado em 6 de agosto de 2025, foi tão grande que provocou uma onda inédita de reação legislativa. Segundo levantamento foram pelo menos 32 projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados diretamente relacionados ao tema. As propostas variaram desde a proibição da monetização de conteúdos produzidos por crianças até a tipificação da adultização digital como crime, passando por exigências de alvará judicial, contratos específicos, maior controle parental e verificação de idade. Também houve avanços em projetos que preveem aumento de pena para aliciamento de menores pela internet. O presidente da Câmara, Hugo Motta, deu prioridade para o tema, concretizado na aprovação em tempo recorde de projeto de lei sobre a adultização.

A adultização infantil é um crime em camadas, que começa na desatenção ao direito ao respeito e à dignidade previsto no ECA, se perpetua no armazenamento de conteúdo e pode se agravar com a exposição digital. O Brasil tem, neste momento, uma oportunidade de fazer valer a legislação já existente e de inovar em mecanismos jurídicos frente aos novos desafios do ambiente on-line.

Caroline Rangel é advogada criminalista com pós-graduação em Ciências Penais.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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