• Carregando...
Agenteísmo, voceísmo, aísmo: vícios de linguagem
| Foto: Pixabay

Chama-se agenteísmo o vício de linguagem consistente no uso repetitivo e quase exclusivo da locução “a gente”.

“A gente” significa as pessoas, indeterminadamente. Por exemplo: a gente moça = as pessoas moças; a gente curitibana = os curitibanos; a gente ledora = as pessoas que leem, os leitores.

Coloquialmente, tal expressão equivale a “eu”, amiúde a “nós”: “A gente viajou” = “Eu viajei”; “A gente passa frio” = “Nós passamos frio”. Ela é linguisticamente inferior, por ambiguidade: ela não indica inequivocamente o sujeito do discurso: ora trata-se de “eu”, ora de “nós”, reconhecíveis  indiretamente não pela própria locução e sim pelo contexto, de cujo entendimento o ouvinte ou leitor depende para discernir a quem ela se refere, sentido em que ela é inferior aos pronomes retos (eu, nós), linguisticamente superiores, pois sempre indicam direta e inequivocamente o sujeito do discurso, que se reconhece pronta e independentemente do contexto. Diante de “a gente”, não se sabe, desde logo, quem é; diante de “eu”, “nós” (e dos demais pronomes) sabe-se, desde logo, quem é.

“A gente”: quem ? Eu ? Tu ? Ele ? Nós ? Vós ? Eles ? Todos ? Alguém hipotético ? A humanidade ?

Modo de dizer sempre ambíguo é defeituoso; modo de dizer jamais ambíguo é virtuoso. Os pronomes retos jamais são ambíguos; a expressão “a gente” sempre o é: aqueles são virtuosos, esta é defeituosa.

O emprego desta locução compreende males:

1) Ela suprime os pronomes retos “eu” e “nós”; menos comumente, suprime “tu”, “eles”, “vós”, “eles”, e as respectivas conjugações. Rudimentar, ela é “fácil” às custas da qualidade intrínseca e estética da comunicação, de que subtrai rigor, clareza e beleza.

2) Ela é usada egocentricamente: referir as ações e ocorrências a “a gente”, resulta em tomá-la por agente e centro dos fatos, ainda que realmente não o seja; tal emprego muitas vezes falseia a realidade: “No passado a gente tinha faraós que construíram pirâmides no Egito em que a gente tinha o rio Nilo, a gente tinha enchentes e colheitas”. Nem “eu” nem “nós” temos nem tínhamos.

Em outras situações, ainda que alguém contemporâneo se relacione por alguma forma com situações atuais, o emprego desta locução é vago: “Na Terra a gente tem atmosfera, a gente tem mares, a gente quer preservar o ambiente em que a gente vive para a gente deixar o mundo melhor para os filhos da gente”.

3) Ela suprime os verbos ter e haver (e outros) quando aplicada na sub-forma “a gente + ter”. Por exemplo: “A gente tem epidemia” por “Há epidemia”, “Existe epidemia”, “Verifica-se epidemia”; “A gente tem gripe” por “Estou gripado”, “Estamos gripados”, “Gripei-me”, “Peguei gripe”, “Apanhei gripe”, “Está-se gripado”, “Tenho gripe”, “Contraí gripe”, “Padeço de gripe”, “Enfermo de gripe”.

4) Ela ocorre duas, três, quatro, cinco vezes na frase ou no discurso. Sua reiteração é fastidiosa, impertinente, monótona. Ela é bordão e cacoete.

5) Ela constitui vício: muitos já não se sabem expressar sem referir as ações e ocorrências a “a gente” e sem a reiterar. Desaprenderam a comunicar-se de outra forma; são incapazes de empregar os pronomes retos e as respetivas conjugações, e outros verbos cabíveis, no caso do item anterior.

Em suma: seu uso vicioso limita a capacidade de expressão e empobrece drasticamente o rigor da comunicação e suas variedade e beleza. Ela é dispensável, desnecessária, pobre e empobrecedora; é a pior vulgaridade em voga.

Décadas atrás, seu emprego era raro, juvenil e soava mal; falava-se, então, em geral com mais rigor e propriedade. Nos últimos meses, ela disseminou-se depressa, como sempre, por imitação do ruim.

Compare:

I) No passado, a gente tinha faraós que construíram pirâmides no Egito em que a gente tinha o rio Nilo e a gente tinha enchentes e a gente tinha colheitas. No passado, havia faraós que construíram pirâmides no Egito, em que havia o rio Nilo, que produzia enchentes e gerava colheitas. No passado, os faraós construíram pirâmides no Egito, onde corria o rio Nilo; havia enchentes dele e, a seguir, colheitas.

II) Na Terra a gente tem atmosfera, a gente tem mares, a gente tem responsabilidade para com o ambiente em que a gente vive. A Terra tem atmosfera e mares; todos temos responsabilidade para com o ambiente em que vivemos. Há atmosfera e mares na Terra; somos responsáveis pelo ambiente em que vivemos.

III) A gente quer. Eu quero.

IV) A gente quer. Nós queremos.

V) A gente quer. Quer-se.

VI) A gente existe há milênios. A humanidade existe há milênios. O homem existe há milênios. A espécie humana existe há milênios. O homo sapiens existe há milênios.

Outro vício é o voceísmo: referir-se a si próprio ou a sujeito fictício por "você" e imputar-lhe ações próprias ou hipotéticas:

I) Quando você namora, você se arruma melhor para dizer “Quando eu namoro, arrumo-me melhor”. O locutor refere-se a si, diz de si, mas imputa suas ações ao inexistente “você” e expõe seu ouvinte a pensar que o locutor fala do ouvinte e não de si próprio. João diz a Miguel: “Quando você namora, você se arruma melhor”; João diz de João, mas Miguel talvez pense que diz de Miguel. Este uso do apelativo é especialmente confuso e irracional.

II) Em 1500, você tinha Cabral chegando, você viu os navios na costa, depois você teve escravidão; em outros países, quando você quer baixar uma lei, você precisa do parlamento. Aqui, nenhuma das ações refere-se nem ao locutor nem ao interlocutor ou leitor e sim a terceiros supostos no transactos ou indeterminados. Este uso, desnecessário, do apelativo é especialmente prolixo.

Compare:

I) Quando você namora, você se arruma melhor. Quando namoro, arrumo-me melhor.

II) Em 1500, você tinha Cabral chegando, você viu os navios na costa, depois você teve escravidão; em outros países, quando você quer baixar uma lei, você precisa do parlamento. Em 1500, Cabral chegou, os índios viram os navios na costa, depois houve escravidão; em outros países, para baixarem-se leis, é preciso o parlamento. Em 1500, Cabral chegou, de terra viram-se navios na costa, depois praticou-se a escravidão; em outros países, o parlamento é necessário para baixarem-se leis. Em 1500, Cabral chegou, navios foram avistados da costa; posteriormente, houve escravidão; em outros países, quando se quer baixar uma lei, precisa-se do parlamento.

Outro vício atualmente em expansão em certos meios telejornalísticos é o de aplicar-se o advérbio de lugar “aí” a despropósito, sem aludir a local, situação, contexto: “Obrigada aí”; “Meus pais aí fazem bodas de prata”; “Irei aí para lá”. Como todo vício, grassa por mimese: bastou que alguém o empregasse, para que os ouvintes nele reparassem e o repetissem mecanicamente, embora inútil e prolixo. Chamemos a este vício de aísmo; dos três, é apenas grotesco.

Quer o voceísmo, quer o agenteísmo, simplificam a expressão e o raciocínio, que com eles tornam-se rudimentares, ambíguos, primários e anti-estéticos, motivos por que são perniciosos. É condição de comunicarmo-nos com qualidade e eficiência empregarmos os recursos idiomáticos que nos permitam fazê-lo. A língua portuguesa permite-nos que o façamos cabalmente, com incomparável exatidão, por meio dezesseis formas pronominais (eu, nós, me, mim, se, nos, comigo, conosco, mo, ma, mos, mas, no-la, no-las, no-lo, no-los) e as respectivas conjugações.

Dispomos de dezesseis exatíssimas possibilidades de expressão escrita e oral, que o voceísmo e o agenteísmo reduzem para duas (além dos pronomes tu, ele, vós, eles e os respectivos pronomes oblíquos).

Por algum modo os vícios desfiguram a comunicação, o que se confirma exemplarmente nos casos do voceísmo e do agenteísmo. Aquele existe há cerca de três décadas e abundou antanho; este grassa nos meios jornalísticos, políticos e não só. Com eles as pessoas fazem-se entender, comunicam-se, mas há modos e modos de fazê-lo: piores e melhores, primários e sofisticados, vagos e rigorosos, singulares ou plurais. O uso do conhecimento, do discernimento e do senso estético pertence à expressão cultivada e bela do idioma; os vícios sempre lhe correspondem às formas inferiores e indesejáveis, até ao espírito de rebanho. Para valer-me de bela expressão portuguesa, eles são mais do mesmo, do mesmo ruim.

Arthur Virmond de Lacerda Neto cursou História do Direito na Universidade de Lisboa, lecionou Direito por 25 anos; publicou “A desinformação anti-Positivista no Brasil”, dentre outros vários.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]