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Tudo o que é sólido desmancha no ar, essa é uma das conclusões mais conhecidas do pensamento de Marx. Em compensação, as dubiedades não podem ser estendidas indefinidamente. Equívocos têm limites, num determinado ponto, saturam e se rompem. Isso vale para La Paz ou Brasília, Beirute ou Pequim.

Estamos num desses momentos (mágicos ou fatídicos, de qualquer forma inevitáveis) em que as forças inerciais, responsáveis pela manutenção de alguns precários equilíbrios, são liberadas e todo o sistema adquire grande velocidade. O fenômeno não é isolado (aliás, não existem fenômenos isolados), mas neste caso, as longas tensões somadas à intensa interatividade geram vetores incontroláveis.

Embora nossos politólogos, sociólogos ou antropólogos concordem que as eleições de outubro de 2006 serão efetivamente decididas em outubro de 2010 crescem as inquietações no tocante ao intervalo. Tudo indica que a proclamação dos resultados poderá produzir uma pequena pausa – afinal, ninguém é de ferro, sobretudo no verão brasileiro – mas a rota de colisão está aparentemente traçada. Ou tracejada. Depende da acuidade visual do observador.

Em 2002 havia um árbitro, o presidente FHC presidiu uma das transições mais civilizadas e mais eficazes da nossa história política. O confronto foi intenso mas esgotou-se imediatamente, absorvidos os resultados. Agora, o árbitro é uma das partes do conflito. Iludido pelo espelho das sondagens de opinião pública, mesmo vitorioso o presidente Lula continuará engalfinhado numa disputa para garantir a sobrevivência do seu projeto e, eventualmente, a continuidade do seu mandato.

O PT esticou a corda demasiadamente, essa é a verdade. Aquele estado de espírito sofrido, digno e altivo exposto com tanta grandeza por Tarso Genro em junho de 2005 (em seguida à debacle provocada pelas revelações a respeito do mensalão, quando sugeriu a refundação do partido), foi substituído por um conjunto de impulsos, ora excitados ora delirantes, sempre comandados pela insegurança. Quase nunca ponderados.

Não se joga xadrez em clima de desespero, sobretudo quando os antagonistas não primam pela coerência e capacidade de resposta. O núcleo que comanda o sistema nervoso do governo (onde se incluem alguns dos dirigentes afastados tomados pela angústia do retorno), deixou-se levar pelo ímpeto da revanche. Estabeleceu ritmo e diapasão dificilmente controláveis.

Neste ambiente, é impossível disfarçar ou minimizar as ambigüidades, elas estouram espontaneamente. É evidente que o governo não poderia prever o mais recente surto de Evo Morales ao assumir o controle definitivo das duas refinarias da Petrobrás nem a incompetência de seus auxiliares incapazes de pressentir que qualquer insensatez na véspera do início da Conferência dos Não-Alinhados em Havana produziria efeitos inimagináveis.

As camufladas contradições no eixo La Paz–Brasília germinavam em alta velocidade: o novo presidente boliviano-bolivariano encalacrou-se cedo demais e precisava manter a mobilização do seu eleitorado. O governo Lula também precisa mobilizar o seu eleitorado e não pode oferecer-lhe apenas o adiamento da crise por duas semanas.

São mais graves as ambigüidades na esfera macroeconômica, a gastança pré-eleitoral terá de ser reparada imediata e rigorosamente. O eleitor dos grotões pode não ser sensível à questão das mãos limpas, mas certamente prestará mais atenção às distantes questões morais se e quando aparecerem alterações nos caraminguás que aliviam suas premências.

Além disso, é imperioso levar em conta uma inédita e salutar aglutinação (ou conscientização) dentro do aparelho legal. Ao contrário do Legislativo que aposta na continuidade, os detentores dos instrumentos do sistema jurídico vislumbraram a necessidade da descontinuidade. O Conselho Nacional de Justiça, o Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República, a Controladoria-Geral da União e, sobretudo, a Justiça Eleitoral começam a movimentar-se empurrados por suas próprias dinâmicas e compromissos. Sobretudo pela necessidade de preencher os vazios de poder.

De repente, a pasmaceira e a dubiedade podem produzir ação.

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